Opinião: Planeamento ou asfixia?

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O planeamento urbano e territorial, adiante simplesmente referido como planeamento, é mais recente que o Projeto. Desde sempre que, para executar a mais simples das obras, a manualidade humana necessita de projetos. Não são exclusivamente projetos delineados e rigorosos, tal como hoje os conhecemos, podem ser por vezes traços toscos, riscados com um ponteiro na terra, outras vezes são só meros pensamentos, sem riscos visíveis, mas são projetos. O projeto é mais material por definição, diz respeito à concretude da obra, à forma como se dominam os materiais e como se conjugam para criar uma solução.
O planeamento, por sua vez, começa por atuar na abstração e vai evoluindo em direção à concretização das obras, munindo-se sempre dos projetos parcelares, conjugados pela visão do todo. Desenvolve-se só a partir dos finais do século XIX, para reagir de forma integrada aos graves problemas com que as cidades se debatiam na altura, e podemos dizer que teve o seu auge nos meados do Século XX, precisamente para tentar regular e aproveitar a bacia de um rio, o Tennessee. A célebre TVA, Tennessee Valley Authority, foi fundada em 1933 e na década de 1950 era já uma referência mundial no planeamento integrado. Projetava e coordenava investimento público e privado, regularização do leito e do caudal, produção de energia, acessibilidades e comunicações, aglomerados urbanos. Dava sentido, enfim, aos esteios funcionais do planeamento, ou seja, antecipar os potenciais problemas existentes do território, projetar as medidas necessárias para a sua resolução e, por fim, executá-las. Ou, se preferirem, identificar os problemas e resolvê-los.
As obras de regularização do Mondego, por seu lado, começaram no Século XVIII e ainda não acabaram. Durante a década de 1980, houve obras significativas que, contudo, ficaram incompletas. Diz quem sabe que a Barragem de Girabolhos, no Alto Mondego, iria reduzir o risco de inundações. A dragagem da albufeira de Coimbra a montante do açude deveria ser periódica, senão mesmo permanente. Mas não, fez-se uma campanha há alguns anos e agora… pronto, já chega. A designada praia do Rebolim constitui o deleite de alguns habitantes no Verão mas, na realidade, não prenuncia nada de bom… Ora, que se saiba, nenhuma destas medidas se perfila sequer no horizonte, nem mesmo num horizonte longínquo. Mesmo as medidas de beneficiação de infraestuturas de controlo das cheias do Aproveitamento Hidráulico do Mondego, com a modesta dotação de 120 000 euros, foram consideradas de prioridade baixa no “Plano de Gestão dos Riscos de Inundações” da Agência Portuguesa do Ambiente. Será que as comportas de Santa Clara-a-Velha estão também incluídas nessas infraestruturas?
Instituiu-se a ideia que no Mondego, e pelo que diz respeito à subida das águas, é a Divina Providência que põe e dispõe. Não estou a inventar, já ouvi um Ministro do Ambiente a dizê-lo. Portanto, as medidas são só de alerta às populações e pouco mais.
Ora, foi aquele mesmo “Plano de Gestão dos Riscos de Inundações” que decidiu subir em dois metros a cota do leito de cheia do Mondego junto a Coimbra. Para além de, num ápice, ficarmos todos cientes que, a qualquer momento, o centro da cidade poderá ficar alagado, inclusivamente as áreas que são património da humanidade, vimos inviabilizada, uma vez mais, a possibilidade de ter uma porta de entrada na cidade com alguma dignidade urbana. Essa possibilidade foi aberta pela decisão de quadruplicar a Linha do Norte entre Taveiro e Coimbra B e de fazer um Plano de Pormenor que integrasse uma nova estação ferroviária para Coimbra, a construir de raiz, num novo terminal intermodal para os restantes transportes: rodoviários, metro bus e SMTUC. Um Plano de Pormenor que, na verdade, é um verdadeiro projeto, para aludir à dicotomia que abre esta crónica.
O transporte ferroviário caracteriza-se por levar os passageiros até aos centros das cidades. O Plano de Pormenor encomendado ao arquiteto catalão Joan Busquets, professor da Harvard School of Design, que estava já em fase adiantada de elaboração, muito dificilmente conseguirá agora dar sequência a essa subida súbita de dois metros. Vamos provavelmente ficar com uma estação com acessos ainda mais arrevesados, com áreas brutais de estacionamento acima da superfície, com um espaço tão condicionado, do ponto de vista da construção, que só por ironia se poderá identificar como central. Mais uma maldição, a juntar a tantas outras que Coimbra parece atrair.
Mesmo a nova variante da linha de alta velocidade ferroviária, que vem de Taveiro até à Adémia para servir a estação de Coimbra, corre o risco de alagar. Mas, claro está, se tal ocorrer não vai haver qualquer problema porque a ligação Lisboa – Porto estará sempre garantida por um viaduto imenso sobre o vale, alguns metros acima da cota de cheia definida pelo tal Plano de Gestão dos Riscos de Inundações. Essa ligação jamais poderá ser alvo de uma subida de cota. Também já ouvi um Ministro do Ambiente dizer isto, o mesmo ministro, de resto.
Esta subida de cota do leito de cheia dentro da cidade de Coimbra é, portanto, uma medida que se integra bem no primeiro dos eixos funcionais do planeamento, a antecipação dos potenciais problemas. Mas no tal “Plano de Gestão dos Riscos de Inundações” não vislumbro qualquer intenção de projetar e executar as medidas necessárias à sua resolução, pelo menos de modo convincente. Será isto planeamento?
Não posso, nem quero, duvidar das competências aplicadas na identificação do potencial problema. Está identificado, muito bem. E agora?
Agora, a cidade fica ainda mais asfixiada e talvez tenha mesmo perdido de vez a grande oportunidade de colmatar minimamente as acessibilidades perdidas ao longo do último meio século.

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