Opinião: “Elí, Elí, lemá sabakhtáni?”

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“Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” Estas palavras, proferidas em aramaico por Cristo e transmitidas por Mateus e por Marcos, são proferidas por Jesus poucos antes de expirar na Cruz. Representam o momento em que as trevas parecem vencer, sucumbindo o próprio Cristo ao desânimo. Dos seus doze companheiros, só o mais novo estava lá: dez andavam fugidos e um tinha-se enforcado. Embora os onze (os primeiros bispos) venham subsequentemente a desempenhar um papel fundamental, para a Igreja de então e de hoje, é bem claro que tal acontece apesar dos seus deméritos, e não em virtude dos seus méritos. Para os crentes, apenas o próprio Cristo consegue impedir que a barca furada da Igreja se afunde, juntamente com a sua tripulação inidónea. Até os não crentes concordam que só por milagre ainda existe.
A leitura do Relatório Final da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa mostra a atualidade do relato da Paixão de Cristo, com vidas inocentes a serem suprimidas e atiradas literalmente de Herodes para Pilatos, com as autoridades a assobiarem para o lado ou a perguntarem cinicamente “o que é a verdade?” As vítimas representam a face visível e atual do próprio Cristo em que assenta verdadeiramente a Igreja: “Amen vos digo: quantas vezes o fizestes a um destes meus irmãos mais pequenos, a mim o fizestes”. Tal como Ele, também tantas vítimas conseguiram reerguer-se do sepulcro para onde foram atiradas. Disponibilizaram-se, com generosidade e força sobre-humana, a apresentar o seu testemunho, revivendo o inferno para ajudar a eliminá-lo.
Perante tal testemunho, é bom que se comece pelo pedido de perdão, regando os pés das vítimas com lágrimas e enxugando-os com os cabelos. Mas não basta. Naturalmente, num estado de direito, todas as responsabilidades no plano civil e penal (e canónico) devem ser assumidas até ao último iota, sem que possam, todavia, reparar o mal feito. À demissão, óbvia e prevista pelo direito canónico (nas normas estabelecidas por Bento XVI em 2010 ), mencionada por Pedro Strecht relativamente aos casos inadmissíveis de abusadores que ainda estejam ao serviço, acrescem as medidas cautelares em casos sujeitos a investigação, também de acordo com o direito. Acresce ainda, de acordo com as normas estabelecidas pelo Papa Francisco em 2016, a remoção do cargo, também óbvia e prevista, dos bispos e superiores religiosos coniventes por ação, omissão ou simples negligência.
Aos olhos de muitos, a conferência episcopal portuguesa tem merecido comentários elogiosos pela abertura e coragem em montar uma comissão de altíssimo nível e verdadeiramente independente, de forma a começar a abordar este problema com seriedade. É um começo necessário. Dentro e fora da Igreja, espera-se que esse percurso de verdade, reparação e expiação continue a ser percorrido, conduzindo a um caminho de vida em que crianças, jovens e adultos vulneráveis não estejam à mercê de predadores. Já segundo o critério do Evangelho, mais do que cumprimentos dever-se-á antes acrescentar: «Assim também vós, quando tiverdes feito tudo o que vos foi ordenado, dizei: “Somos servos inúteis, fizemos o que devíamos fazer”».

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