Opinião: “Uma decisão (absurda) para a História”

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Faz hoje uma semana que o Supremo Tribunal dos Estados Unidos reverteu uma decisão sobre o direito ao aborto, que dita uma mudança sísmica na lei e deixará de proteger a nível federal as mulheres que pretendam fazer um aborto naquele país. Assim, caberá a cada um dos 50 Estados a aprovação de legislação própria.
A mais alta instância judicial dos EUA foi chamada a pronunciar-se depois de uma decisão do Estado do Mississípi de proibir o aborto após as 15 semanas de gestação, considerada uma violação da lei federal.
Para enquadramento dos nossos leitores, Roe v. Wade foi considerado pelos movimentos feministas uma vitória das mulheres, há quase cinquenta anos, ao reconhecer o seu direito a abortar e impedindo a sua criminalização em todo o país. O famoso caso ocorreu em 1973, depois de uma mulher que engravidou na sequência de uma violação ter vencido num tribunal do condado de Dallas, no Texas. Norma McCorvey – de pseudónimo Jane Roe – viu o tribunal dar-lhe razão, apesar dos argumentos do procurador Henry Wade, que se opunha à legalização do aborto. A histórica decisão ficou refletida na 14.ª Emenda Constitucional, um pilar dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres nos EUA considerado – até há pouco – inabalável.
Os juízes do Supremo Tribunal consideraram agora que a jurisprudência de Roe v. Wade foi errada, concluindo não se tratar de um direito constitucional, mas sim de matéria a ser legislada por cada um dos Estados. Um destes, o Juiz Thomas, escreveu já que os direitos ao acesso a contracetivos ou ao casamento entre casais do mesmo sexo poderão, igualmente, ser reavaliados.
Politicamente, a sua anulação cinco décadas depois (e, já agora, também do caso Planned Parenthood vs Casey – 1992) é vista como uma vitória dos apoiantes do ex-Presidente Donald Trump, do Partido Republicano e dos conservadores religiosos que pretendem restringir ou abolir o direito ao aborto.
Eu, se me permitem, vejo-a como uma triste reversão nos direitos das mulheres, no seu direito de autodeterminação e de controlar os seus corpos.
Esta decisão é o culminar de vários anos de esforços e estratégia política dos grupos antiaborto, ganhando força com a nomeação de três magistrados por parte do anterior presidente Trump. Foi a composição do atual Supremo Tribunal, de maioria conservadora, que abriu a porta à revisão da legislação, com seis votos dos juízes conservadores contra três dos liberais. É expectável que 26 Estados venham, de imediato, colocar restrições – em graus diversos – à prática do aborto.
Refira-se que a reversão do caso Roe v. Wade marca a segunda decisão em dois dias favorável a uma maioria conservadora, depois de os mesmos seis magistrados terem decidido que transportar armas em público é um direito fundamental dos norte-americanos, não obstante, e segundo o Gun Violence Archive, os 250 (!) massacres com armas já verificados em 2022 (início de julho, caros leitores…).
O princípio da não ingerência nos assuntos internos dos Estados é um pilar do Direito Internacional, e as instituições soberanas dos EUA têm a legitimidade para tomar as decisões que entenderem. Mas é um momento altamente preocupante para o Ocidente. Este será, por agora, o tema político dominante nos EUA, e a extrema polarização interna que esta decisão provocará na já dividida sociedade norte-americana será um golpe duro na liderança que deles se espera, numa altura em que o mundo precisa de uns Estados verdadeiramente Unidos. Como por aqui escrevi há umas semanas, vivemos tempos gelados.

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