Opinião – As unhas dos cientistas

Posted by
Spread the love

O contraste entre aquilo que se diz/acredita e aquilo que se faz é uma constante da humanidade. Este perene paradoxo conduziu, ao longo dos séculos, a uma menorização do fazer sobre o pensar. Há nesta atitude um fundo remoto de sensatez: antes de começar a agir, é preciso parar para refletir. E convém pedir bons conselhos a quem sabe e a quem tem uma visão abrangente. Arquimedes, segundo o relato de Plutarco, menorizava assim os seus contributos tecnológicos. Os mandarins chineses, por sua vez, ostentavam unhas compridíssimas que atestavam que as suas mãos não executavam qualquer trabalho manual.

Contudo, o nosso cérebro é perito em enganar-se e em enganar-nos, inventando com a maior facilidade justificações para o injustificável. Treinado pela evolução para uma análise rápida de situações de perigo potencial, este órgão potentíssimo permanentemente nos afoga com mil e uma sugestões mirabolantes para os múltiplos estímulos que o convocam. A única forma de o colocar na ordem é com um banho permanente de realidade, que costuma ser remédio seguro para as atividades quotidianas.

Contudo, em atividades que requerem reflexão mais amadurecida, como na ciência, na filosofia ou na teologia, o impertinente órgão pensador rapidamente assume um comando indisputado, ainda que por vezes delirante. Foi na Europa que, ao longo de muitos séculos, se forjou uma forma de controlar os excessos arrogantes da racionalidade. A origem remota deste método encontra-se na insistência do monaquismo medieval na valorização do trabalho manual através da regra “ora et labora” (reza e trabalha).

Os descobrimentos náuticos iniciados pelos Portugueses desempenharam subsequentemente uma revolução essencial, em que marinheiros incultos revelaram “novos mundos ao Mundo”, em frequente e flagrante contradição com os ensinamentos dos filósofos. O método científico forjado a partir de então eleva assim a experiência a critério primordial para estabelecimento do conhecimento sobre a Natureza.

O nascimento do método científico no século XVI e a ebulição cultural do Renascimento levaram contudo a um forte movimento de reação, de que Portugal foi um membro destacado. A virtude da humildade perante a Natureza, introduzida pelo método científico, foi assim travada entre nós pela soberba da filosofia e da teologia impostas inquisitorialmente.

A nova abordagem ao conhecimento acaba, contudo, por se autoimpor também em Portugal, embora apenas no fim do século XVIII. A conversão ao método experimental, no decurso das grandes discussões do Iluminismo, foi consagrada em 1772 com a concessão de novos Estatutos à Universidade de Coimbra, pelo Marquês de Pombal. Nestes, é criada uma nova Faculdade de Filosofia, excelentemente equipada com um Gabinete de Física Experimental, um Laboratório Chimico e um Museu de História Natural, que ainda hoje são um tesouro inestimável a nível mundial.

Foi assim em boa hora que a Universidade de Coimbra.Anunciou a comemoração dos 250 anos da Reforma Pombalina da Universidade, que se cumprem em 2022. Trata-se de facto de um momento fundador da modernidade em Portugal, em que finalmente o conhecimento de base experimental, adquirido com o trabalho manual e alicerce indispensável para a tecnologia e para o empreendedorismo económico de base tecnológica, é elevado à mesma categoria do conhecimento obtido pelo puro intelecto, raiz de todos os fanatismos.

Trata-se de um evento de inegável dimensão nacional, de que há ainda a extrair muitos ensinamentos para os próximos 250 anos, seja ao nível de um ensino superior em que as novas gerações são colocadas na fronteira de conhecimento, que aprendem a construir com base na experiência, seja ao nível das aplicações tecnológicas e na ligação dos saberes à economia e à sociedade, seja na construção de uma sociedade tolerante e aberta.

Leave a Reply

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

*

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.