Opinião: “A(r)tivistas”

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Lembro-me de uma velha história que conta que chegaram ao soberano ecos de descontentamento do povo para com o seu autoritarismo. Rejeitando as acusações que lhe eram dirigidas, o soberano fechou-se sozinho na sua sala de despacho privado e… deliberou demitir o povo.
A democracia caracteriza-se, na sua essência, pela partilha do poder, legitimada através da participação dos cidadãos. Este modelo de cidadania assenta no pluralismo, no respeito pela diferença expressa pela multiplicidade de vozes e na valorização da divergência de opinião como ponto de partida para o progresso social.
Quando o exercício do poder age de forma contrária, arrogando-se da razão unívoca do caminho, apagando luzes em vez de iluminar, asfixiando a comunidade e deixando-a numa perigosa masmorra de sombras, negando-lhe a voz, desrespeitando-a e usando a repressão como forma de autoafirmação, acontece ciclicamente a emancipação do povo.
Não há muito tempo, em finais de abril de 2021, foi elaborada uma carta de princípios orientadores para a promoção de uma cidadania cultural plena, abordando justamente a maior participação e a emancipação dos cidadãos. A Carta do Porto Santo, como ficou designada, por ter sido nesta ilha portuguesa que se juntaram vários decisores políticos da União Europeia, é um guia de ativismo que exorta a uma nova democracia cultural na Europa.
Desde logo, a cultura é entendida no plural, como um conjunto de “sistemas simbólicos que nos ajudam a dar um sentido à experiência (pessoal e coletiva) e uma forma humana ao mundo, determinando o horizonte de possibilidades em que nos movemos”. A cultura é tanto a tradição que herdamos como a criação contemporânea. Logo, as culturas são um processo criativo infinito, em que continuamos a trabalhar, conservando e inovando, prosseguindo o processo através das gerações seguintes, infindavelmente.
A Carta do Porto Santo propõe aos decisores políticos o desenvolvimento de planos de ação que liguem a educação à cultura, respeitando os desafios da diversidade, da inclusão e da democracia. Mas intima-os também a assumir um horizonte cultural comum, promovendo a democratização e o acesso, reforçando o apoio e o financiamento à cultura pautado por critérios de qualidade baseados em parâmetros de acessibilidade, inclusão, diversidade e igualdade.
Ao contrário do soberano que quis demitir o povo, a Carta do Porto Santo coloca no centro das novas políticas o envolvimento direto das comunidades, devendo os políticos criar condições de inovação no espaço digital, promover competências digitais que ajudem a ultrapassar a exclusão para assim melhor e assegurar o acesso a conteúdos de cultura, património e artes.
É preciso não ter medo da cultura e não a utilizar como rédeas à liberdade dos cidadãos. Não! Muito pelo contrário! É preciso, através da cultura, conceder a oportunidade de participar, de estar mais informado e instruído, de permitir criar e fruir experiências culturais.
Investir no futuro é “multiplicar espaços de criação, salas de ensaio, ateliês e estúdios que promovam a experimentação, a produção e a criação, de modo autónomo e colaborativo”.
Desta forma, o ativismo pela cultura e pela arte converte-se num grito de liberdade da sociedade. Há toda uma cidadania ansiosa pelo direito ao a(r)tivismo!

Pode ler a opinião de Bruno Paixão na edição impressa e digital do DIÁRIO AS BEIRAS

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