eutanásia – opinião: Uma decisão sensata

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Nos últimos anos, ouvi muitas pessoas falar sobre a morte. Conversei com muitos profissionais de saúde, juristas, filósofos, escritores, padres. Mas conversei sobretudo com muita gente, de todas as formações, credos e idades, para quem a relação com a morte se fez essencialmente de experiências dolorosas de proximidade com familiares e amigos que tiveram um fim de vida marcado pela deterioração violenta do corpo e por um sofrimento imenso, físico e anímico, vivido como um desrespeito total por si mesmos, que os humilhou e violentou. Não foi de conceitos abstratos nem de preceitos gerais que essas esposas, esses irmãos, esses filhos e netos, essas amigas me falaram. Falaram-me da vida concreta e da morte concreta dos seus mais queridos. E falaram-me, quase sempre, com uma indisfarçável revolta, de quem não consegue aceitar que seja humano morrer assim.
O que o parlamento decide esta quinta feira é se estas mortes em sofrimento, que quem está a morrer vive como um processo de imensa indignidade, têm que continuar a ser uma fatalidade que a lei impõe ou se a lei dá um passo para diminuir o espaço dessa fatalidade.
Claro que o incremento da oferta de cuidados paliativos faz parte desse passo. Urge – há tempo demais – que a cobertura de cuidados paliativos de qualidade no Serviço Nacional de Saúde se multiplique. Por isso foi importante a aprovação, no quadro do Orçamento para 2020, da proposta de que passe a existir uma equipa comunitária de suporte em cuidados paliativos em cada agrupamento de centros de saúde e uma unidade de cuidados paliativos em todos os centros hospitalares e nas delegações regionais do IPO. Mas não nos enganemos: para muita gente, os cuidados paliativos não são a resposta. Basta atentar na realidade da Bélgica, país que despenalizou a morte assistida: 74% das pessoas que pediram a antecipação da sua morte por eutanásia estavam em cuidados paliativos, valência que, na Bélgica, tem uma qualidade reconhecida por todos. E, mesmo que assim não fosse, é óbvio que os que invocam a necessidade de dar precedência ao aumento de cuidados paliativos sobre a despenalização da morte assistida, se um dia houvesse uma cobertura ideal de cuidados paliativos manteriam o não à despenalização – para esses, a questão não é de precedência, é de negação absoluta.
Deixar de punir como criminoso um médico que ajuda alguém com uma doença fatal e com um sofrimento insuportável a antecipar a sua morte, respeitando a vontade dessa pessoa, é um gesto sensato numa sociedade felizmente pluralista como a nossa. Definir com rigor as condições em que essa despenalização pode ocorrer, marcar linhas inultrapassáveis para o que é crime e o que não é, estabelecer com clareza os direitos e os deveres dos profissionais de saúde para este efeito, identificar com minúcia os mecanismos de garantia do cumprimento escrupuloso da lei, tudo isso é o que se espera de uma lei equilibrada, prudente e razoável. Sim, esta não é uma questão de sim ou de não, mas essencialmente de como. Quem, oportunisticamente, quer fazer desta decisão o que ela não é, tirando-a de uma discussão serena e fina para a lançar num campeonato de emoções entre diferentes visões exaltadas, não presta um bom serviço às vidas concretas das pessoas concretas.
Nas tantas conversas que tive com familiares e amigos de quem morreu profundamente violentado pela degradação da sua condição física e relacional, nunca ouvi uma palavra de soberba ou um desejo de desforra. Apenas a amargura por não ter havido a grandeza de reconhecer ao seu querido o direito a despedir-se da vida com serenidade e com grandeza. É essa grandeza que o parlamento, em representação do povo, está chamado a assumir agora.

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