Opinião: A força de um povo supérfluo

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Referindo-se aos refugiados e apátridas fugidas do terror nazi, Hannah Arendt cunhou-os de “pessoas supérfluas”. Pessoas totalmente indefesas, esquecidas por todos os poderes protetores e alvo de todos os poderes persecutórios e opressores. A imagem vale para povos marginalizados pelo jogo dos interesses e das conveniências geopolíticas, povos atirados para o esquecimento e afastados do horizonte dos direitos. Foi assim com o povo de Timor, é assim com o povo saharaui, é assim também com o povo curdo.
Os curdos são supérfluos porque os Estados por onde estão dispersos – Irão, Iraque, Síria e Turquia – são peças importantes de um xadrez em que as potências mundiais e regionais não querem que haja turbulência senão aquela que convém aos seus apetites políticos e territoriais.
Os curdos são supérfluos porque a Turquia é membro da NATO e o preço a pagar pelas potências ocidentais para terem nela um aliado fiável naquele ponto nevrálgico do mundo pode bem ser a cumplicidade por ação e por passividade com o esmagamento dos curdos.
Os curdos são supérfluos porque para Paris, Berlim, Londres ou Lisboa, não se deve irritar muito Erdogan, porque ele tem na mão uma arma temível: deixar vir para a Europa as multidões de refugiados sírios que se amontoam em Istambul e que Ankara é paga para conter às portas da humanista Europa.
Os curdos são supérfluos porque a governação do seu território no Norte da Síria fugiu ao cânone autoritário e patriarcal imposto pelas elites da região nos seus países. A experiência de confederalismo democrático adotada em Rojava – uma democracia de alta intensidade, construída da base para o topo e que confere importância central à paridade de género, ao combate ecológico e à distribuição justa de terra e de rendimentos – é vista como uma provocação pelas dinastias de tiranetes que mandam nos diferentes países vizinhos de Rojava. Os curdos são supérfluos e esse é o preço que pagam pela ousadia de não quererem menos que a democracia paritária.
Muito mais que uma disputa sobre fronteiras, o ataque turco ao Curdistão Sírio e o apoio dado por americanos, russos e europeus a Erdogan é um combate contra a intensidade da democracia assumida pelo autogoverno curdo em Rojava. É isso que Erdogan quer erradicar e que os seus aliados da NATO consentem que erradique. E assim mostram como a democracia paritária é um elemento perturbador para a ordem mundial que eles protagonizam.

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