“Ah! as casas…”, por os Contos Controversos

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Como é do conhecimento geral a esperança de vida tem vindo felizmente a aumentar. Todavia não temos conseguido vislumbrar modalidades inovadoras de organização social que permitam a fruição dos benefícios que esse aumento comporta quer para as pessoas quer para a comunidade. E o lado negativo desta realidade torna-se ainda mais pesado uma vez que o aumento da esperança de vida traz consigo o aumento da probabilidade de uma faixa importante da população idosa ser atingida pela doença de Alzheimer, afecção do cérebro que conduz á demência. E a demência é devastadora para a vida de relação da pessoa consigo mesma, com os outros e com o mundo, constituindo uma morte por antecipação, uma “morte da mente” antes da “morte do corpo”. Apesar dos progressos que a neuro-química do cérebro tem conhecido nas últimas décadas, são os próprios especialistas das neurociências que consideram estarmos ainda longe de conhecermos os complexos mecanismos da drástica redução dos hemisférios cerebrais que num processo lento conduz à demência.
Estamos, por conseguinte, perante uma realidade psicossocial de inegável actualidade a exigir estudo e reflexão que permitam dar respostas às necessidades de desenvolvimento científico, humano e social. Tem por isso cabimento perguntar se as artes podem de algum modo ajudar nesta reflexão. A resposta é, sem dúvida, positiva perante alguns exemplos ilustrativos. O primeiro reporta-se ao livro de poesia de João Rasteiro A rose is a rose is a rose et coetera , obra literária inovadora e originalíssima que constitui um testemunho e um alerta relativamente às repercussões da doença de Alzheimer. Testemunho de um duplo sofrimento: o sofrimento da Mãe do poeta afectada pela doença de Alzheimer, doença que lhe provocou a deterioração imparável do cérebro e da mente, e por outro lado o sofrimento do filho perante a lenta “transformação” de sua Mãe, a sua progressiva “ausência”, o seu estranho “distanciamento” e a quase total “incomunicabilidade” antes da morte. Testemunho, sim, mas também alerta para a realidade dramática da doença de Alhzeimer e da demência subsequente. Não sendo preocupação do autor que o livro tivesse uma tal finalidade, o certo é que, por muito que apreciemos a sua qualidade literária, não ficamos indiferentes à densidade emocional do drama humano com que a narrativa poética nos confronta. A leitura do livro torna-nos mais sábios para compreender, mais sensíveis para ajudar e mais disponíveis para acompanhar as pessoas próximas em cujas mãos o destino, nas insondáveis razões que o comandam, decida um dia depor uma “rosa de Alzheimer” para utilizarmos uma bela metáfora poética de João Rasteiro. Além da Poesia, o teatro é outro exemplo em que a arte pode ajudar-nos a compreender a realidade interpessoal da doença. E por isso, os ControVersos, grupo de teatro da Associação ReCriar Caminhos apresentam hoje, às 21h00, na Capela da Santa Casa da Misericórdia de Coimbra a peça “O corpo é a casa do mais fundo abismo”, com base no livro de poesia de João Rasteiro numa adaptação e encenação dramatúrgica de Ricardo Kalash. A apresentação da peça integra-se no programa oficial da 20ª Semana Cultural da Universidade de Coimbra que tem por tema unificador o primeiro verso do poema de Ruy Belo “Oh! As casas, as casas, as casas”.
E o corpo é a casa da nossa mais íntima intimidade, a casa do mais fundo abismo!

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