Opinião – Fundboxes e outras habilidades

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Quando era moço, neste tempo de agora que começa a ser de férias, o meu lugar preferido era a Berlenga. Ali onde as comodidades eram nenhumas e as felicidades as mais felizes, gostava-se de acordar com o ruído do mar. E gostava-se de adormecer com os gritos das cagarras, um desatino sonoro ritmicamente iluminado pelo feixe do farol. Naquele mundo natural o espaço era habitado de acordo com as necessidades, nem mais largo nem mais estreito do que o que permitia que os bichos e os humanos, sem atropelos, se dispusessem no mundo.

Poucas milhas mais a leste, o chão continental era já mercadoria transacionável, prateleira desse espaço sagrado que são os “mercados”, de que ninguém conhece os rostos, mas de que se sabe serem seres caprichosos, umas vezes nervosos, outras vezes apaziguados, humores afinal dependentes dos sacrifícios que os governos, tementes, lhe dediquem. Como se fossem deuses de antanho. Em miúdo, a palavra “mercado” era sinónimo de “praça”, aquele lugar fantástico, a céu aberto, que ficava entre os Correios e as Caixas de Previdência, num tempo em que a Manutenção Militar fabricava o melhor pão-de leite da Humanidade. Nesses tempos moços não me ocorria ainda que os “mercados” pudessem entrar nas nossas vidas como sinónimo de ganhuça, imoral mas legal, geradora de subdesenvolvimento mas merecedora da reverência de governos (nacionais e locais), dispensável mas impositiva. Os mercados estão acima da democracia, que, na sua versão mais empobrecedora, os serve de votos e de vidas.

Justifica-se, no despautério vigente, que se impeça que a Baixa se transforme em festim – os fundos imobiliários à cata do repasto servido na bandeja da Via Central. Ali, onde já nascem estruturas e o desenho de umas quantas edificações, terá lugar – querendo-se – uma ação essencial e estruturante para o futuro daquela zona e de toda a Baixa de Coimbra. Ali, onde jaz o cadáver dispendioso do projeto do Metro Mondego, o tempo parou por 10 anos, o bastante para que os agentes privados e os especuladores imobiliários se posicionassem, encorajados pela ausência de planeamento e de intervenção da Câmara Municipal de Coimbra.

Em 2010, a Câmara Municipal de Coimbra criou um Fundo Imobiliário de Investimento – o Coimbra Viva I – que é, basicamente, um mecanismo que garante aos privados benefícios fiscais a nível de IMI, IMT e IRC. Este mecanismo confere, aos operadores privados que o integram, a garantia de que a parte pública não influencie, de forma determinante, os negócios a acontecer no espaço reabilitado. No caso concreto da Via Central, os privados – através da empresa Fundbox que gere o fundo Coimbra Viva I e detém cerca de 75 habitações na rua direita e na rua da Moeda – já garantiram que se irão apropriar da maioria das mais-valias da intervenção. Uma vez concluída a reabilitação da zona, os edifícios adquiridos em saldo beneficiarão, naturalmente, dos ganhos gerados pelo investimento público. É, afinal, a ementa do tal repasto principesco que será entregue de bandeja aos proprietários do Fundo, beneficiário do sai-sempre da quermesse da reconstrução da Baixa.

Enquanto o negócio não se concretiza, haja Município que não abdique das suas responsabilidades de restituir àquele espaço os moradores que dele precisem (e de que a Baixa precisa). Haja Município que não se deixe apanhar pela fatalidade da abertura de mais um ou outro alojamento local, do arrendamento de alto custo, dos espaços comerciais que, também ali, espalhem as montras de artefatos de cortiça que vão transformando comércio da Baixa de Coimbra num patético sobreiro a secar ao sol.

Manuel Rocha escreve ao sábado, quinzenalmente

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