“Trabalhar numa experiência que ganhou o Nobel da Física faz-me sentir realizado”

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José Carlos Silva

José Carlos Silva

É natural de Coimbra, mas cresceu em Moçambique. Como foi a sua infância?

Sou natural da freguesia de S. Bartolomeu, mas o meu pai tinha um emprego que nos fazia andar a saltar entre Tondela, Nelas, Figueira da Foz e Coimbra. Aos meus sete anos fomos para Lourenço Marques (hoje Maputo), Moçambique, e ainda tentámos ficar após a revolução, mas não havia condições sociais mínimas e voltámos para Coimbra.

Onde se formou?

Estudei até ao 11.º ano na Brotero. Fui trabalhar para a Estaco (onde estive três anos) e fui o primeiro empregado do Centro Eletrónico de Coimbra. Não tenho curso superior, tenho um BTS pela Universidade de Grenoble, para ter um “papel”, como eu costumo dizer.

Entretanto começou a trabalhar na Universidade de Coimbra. Como foi esse percurso?

Comecei como técnico no Centro de Mecânica dos Fluidos (1985-1986), com o professor Xavier Viegas, a fazer módulos para diferentes aplicações. Recordo-me de ir para as caixas de surpresas comprar as bolas com prendinhas e oferecer aos miúdos que passavam (eu só precisava das bolas para fazer “cataventos”, não do conteúdo) ou ir ao shopping de Celas “partir” os “passpartous” acrílicos (para fotos) porque tinham a forma adequada a expositores para os aparelhos de medição (humidade, direção e velocidade dos ventos) que desenhei para serem instalados em postos de vigia de incêndio do Serviço Nacional de Bombeiros. Por essa altura, (1987) apareceu a possibilidade de ir trabalhar para o departamento de Física com o professor Armando Policarpo, num centro que já era o embrião do LIP. E foi nessa altura que vim aprender eletrónica para câmaras de fios com o George Charpak (Nobel da Física 1992). Comecei a ir mais regularmente ao CERN, desenhar placas para várias partes em outras experiências, e fui ganhando experiência e curriculum.

Como surgiu o seu interesse pela investigação e pela ciência?

Não sei se tenho uma referência de “início”…. Mas o meu gosto pela eletrónica começou com o meu pai a tirar um curso por correspondência e eu ia lendo e fazendo os testes com ele. Aos 11 anos já sabia de cor a Lei de Ohm e já mexia em ferros de soldar e multímetros. Depois, o facto de ter tido a sorte de ir trabalhar para a universidade, para unidades de investigação, terá moldado o meu gosto por “criar” coisas novas, participar em projetos, em caminhos que se percorrem tendo também a sorte de entrar em grupos de investigação bastante ativos, como era o caso do LIP, já nessa altura, com a participação em experiências no CERN.

Como é que chegou ao CERN?

Depois de ter vindo aprender, através do LIP Coimbra, técnicas e eletrónica para experiências de física de partículas enquanto funcionário do LIP, deixei Coimbra por três anos e fui para Marselha a convite do Centre de Physique de Particules de Marseille, em 1990. Estive três anos em Marselha e vim, em 1993, para o CERN para participar em vários projetos. Acabei por ficar por cá, mas ligado ao LIP_Lisboa, através do grupo do professor João Varela.

Onde vive?

Moro em Thoiry, França, (oficialmente, a morada fiscal é Coimbra, a morada do empregador é Lisboa), e trabalho no CERN, oficialmente na Suíça (nada fácil de explicar às Finanças ou à Segurança Social).

O que é que faz, atualmente, no CERN?

Sou o autor da eletrónica de leitura dos dados do ECAL (modulo DCC, Data Concentrator Card,) e do sistema de alinhamento das primitivas de trigger (um palavrão que descreve o “sistema de escolha de eventos interessantes”), projeto Synchonisation and Link Board, SLB (ou o SLB na sua versão ótica). Estes projetos obrigam a que se esteja sempre por perto, a participação na experiência CMS é 24 horas por dia e sete dias por semana.
Em paralelo, no LIP, participámos num projeto pioneiro para rastreio de cancro de mama por “emissão de positrões” (PET) para o qual desenhei a eletrónica de “front-end” e fui coordenador técnico para a instalação desse detetor. Temos um detetor PET a funcionar em Monza, a ser usado em pacientes, e um outro em Coimbra, no ICNAS. Hoje continuamos numa outra área desse projeto, com o desenvolvimento de detetores PET para deteção de cancro no pâncreas e na próstata, uma colaboração europeia. Continuo a participar no desenvolvimento de eletrónica para rastreio de cancro de mama, através de uma startup portuguesa (a PETSYSElectronics) criada para desenvolver técnicas de deteção de cancro. Sou coordenador da Eletrónica do Calorímetro Eletromagnético de CMS e participo, atualmente, nos projetos de redesenho futuro da eletrónica de leitura do detetor (os chamados Upgrades).
Sou também guia “português” (também faço visitas em Espanhol, Francês e Inglês) no CERN. O CERN tem um serviço que proporciona visitas guiadas a vários sítios do CERN, em língua materna sempre que possível, para acolher escolas, mas também para o público em geral.

Como é o seu dia a dia?

O dia a dia começa pelas 08H30, 09H00 com a habitual leitura de emails. Durante o dia estou, ou no meu laboratório, onde desenho as placas, ou vou a CMS (12 quilómetros de estrada e 100 metros de profundidade), participo em reuniões, ligadas à operação do detetor de CMS, ou a outras áreas de projetos em que estou envolvido. Por volta das 19H30, 20H00 vou para casa. Vou tendo um olho nos emails e no estado das coisas em CMS. Não dá para “desligar” da máquina.

Disse, numa entrevista, que saiu de Portugal “porque não o deixavam evoluir o suficiente”. De que modo é que isso acontecia? Acha que isso ainda acontece nos dias de hoje?

Essa afirmação tem a ver com facto de em Coimbra olhar demais para os títulos (os “Drs”) e menos para o trabalho efetivo. Foi, aliás, a razão por que decidi ir para Marselha. Não tinha curso superior e, sem curso é-se posto de “parte” (não me sentia parte do grupo, não ia a reuniões de projetos, coisa que no CERN é impensável) … e foi o melhor que fiz, largar o conforto do contrato permanente e sair.

Sente-se realizado com a sua carreira?

Sinto, muito. Além de fazer “placas” que não existem para as mais variadas aplicações, o facto de ter a sorte de trabalhar com prémios Nobel, trabalhar numa experiência que ganhou o Nobel da Física, e sentir-me parte dele (eu e os outros 7500 colaboradores: 3000 em CMS, 3000 em ATLAS, e 1500 no LHC) ou andar a desenhar eletrónica aplicada à deteção de cancro de mama que “viu” um cancro com 3mm que o scanner normal não viu, deixa-me, com certeza, com um sentimento de realização. Em resumo, o que eu gosto mesmo é de “resolver” quebra-cabeças.

Visita Coimbra com regularidade?

Menos do que gostaria, mas o suficiente para não esquecer os amigos e família. Vou mais regularmente a Lisboa, devido à ligação com o laboratório.

Tem filhos? Qual é a relação deles com Portugal? Gostava que eles fizessem vida por aqui?

Tenho dois filhos. Uma filha de 22 anos, arquiteta de interiores, a começar a carreira em Lausanne, e um rapaz de 17 que vai entrar pra a universidade (para Game Design). Ambos criativos. A minha esposa faz modelos em feltro, e passa o dia ocupada a costurar e a fazer bonecada. Uma família de criadores. A relação com Portugal é a possível. É a terra dos avós, dos primos. O lugar favorito para ir a pesca. Falar Português, sempre, visitar familiares e amigos.

 

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