Opinião – In memoriam de José Guerra

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Mário Nunes

A notícia correu veloz e chegou à Austrália. Estávamos longe de Coimbra. Daquele país da Oceania veio uma voz amiga dar-nos a triste notícia: morreu o Dr. José Adelino Guerra. Infausto acontecimento destroçou quem o estimava e admirava, mais inclemente pela forma como a morte aconteceu. Difícil aceitar o doloroso momento.

José Guerra, cego aos 21 anos por ter sido vítima de acidente na tropa, licenciado em Direito, possuía a capacidade de “ver” apesar de ter perdido a visão. As suas virtualidades de pedagogo, de técnico de Braille e de responsável pela secção desta área de leitura para cegos, demonstravam que só é cego, quem não quer ver. José Guerra ultrapassava a deficiência e contagiava as pessoas que com ele lidavam, pela sua bonomia, pela forte personalidade, pela exemplar humildade e pela bagagem cultural que o inundava, qualidades inerentes ao profissional e cidadão consciente, sabedor e responsável, ao colega de sincera amizade e ao pendor criativo que nele existia. Extraordinário, merece os encómios de todos nós, especialmente do Departamento de Cultura da Câmara Municipal de Coimbra – Biblioteca Municipal. Rasgados elogios póstumos e o sentimento de gratidão, pela força de trabalho e dedicação que nele habitavam, em benefício dos cegos e amblíopes e da sociedade. Superava os inconvenientes que a cegueira produz.

Ao escrevermos este preâmbulo, implica conhecimento pessoal. Acompanhámos de perto e durante oito anos, e partilhámos, periodicamente, as suas ideias e iniciativas. Procurámos responder aos seus desafios culturais e fornecer-lhe as condições humanas, físicas e técnicas (equipamento) para desenvolver a sua missão. Estimulámos, sempre, o pensamento que evidenciava inovar, significando melhorar. E, se a secção de Braille herdada da nossa antecessora, Drª. Teresa Portugal caminhava, ainda, para a afirmação, “oferecemos” ao Dr. Guerra toda a liberdade responsável para operar e concretizar o seu trabalho. E, a biblioteca Braille cresceu, a área operacional alargou-se às Acapos, o intercâmbio institucional ampliou-se, a frequência de leitores cegos e de dirigentes de outras associações subiu. O José Guerra “aprisionava” saber e disponibilidade, resultado de permanente investigação e da criatividade que lhe assistia e que oferecia aos outros. As dezenas de livros em Braille passaram a centenas. E, veio a tradução de obras de autores nacionais e estrangeiros para Braille, e empréstimo. Recordamos a alegria do Dr. Guerra ao saber que incluímos no programa das Festas da Cidade e da Rainha Santa, na sessão solene realizada no Museu Nacional de Machado de Castro, a apresentação pública do primeiro livro integralmente traduzido e paginado por ele na secção de Braille da nossa Biblioteca Municipal. E, recordamos o seu rosto “iluminado” quando o Presidente da Câmara, Dr. Carlos Encarnação, recebeu das suas mãos e perante a vasta assistência, o valioso exemplar de Braille.

Lembramos, ainda, entre outros, o concurso anual organizado pela ACAPO de Coimbra, “um livro é um amigo”, de que fomos membro do júri dez anos, que o José Guerra venceu, mais do que uma vez, na temática do conto, em concorrência com escritores cegos do mundo lusófono. A elegância do seu português e a mestria da redação referenciavam um excelente cultor da língua portuguesa.

Nesta hora de saudade queremos manifestar à memória de José Guerra o nosso obrigado pelo que ofereceu à cultura e a Coimbra. Paz à sua alma.

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