Opinião – As coleções de Louzã Henriques

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Quem os vir assim, limpos e compostos, não imagina as provações por que passaram. Tiveram morada e perderam-na, como os casacos velhos que foram deitados fora e teimam em resistir à montureira – uma manga ainda a acenar a quem passa, trilhada entre a parede e a tampa dos contentores verdes do lixo. São muitos, dispostos como se fossem parentes em árvore genealógica – avôs primeiro, netos no final. São objetos das coleções de Louzã Henriques, que foi médico e antifascista, poeta, tocador e contador de histórias da música do seu povo e de outras vidas (sabe-se lá se de alguém que tenha usado estas coisas para os afazeres da vida, os do trabalho e os do lazer).

Louzã junta-se todas as semanas a um conjunto de amigos, ali no átrio da Livraria Lápis de Memórias, na Solum. Conversam, à moda de antigamente e de hoje ainda, que o divertimento de ouvir e de dizer ainda vai sendo dos mais excelentes. E, talvez pela oportunidade daquela presença constante, a Lápis de Memórias convence o colecionador a tirar os objetos do depósito para os mostrar a quem os queira ver: máquinas de escrever, máquinas de música, máquinas de costura. E há mais. Outras duas coleções são merecedoras de maiores cuidados e, por isso, pouco saem à rua: a das alfaias agrícolas, guardadas na Louzã e precisadas de musealização, e a de instrumentos musicais – alfaias de outras artes, umas de festa, outras de devoção, outras ainda lembradas de serem ganha-pão nas mãos dos habilidosos no tanger das cordas ou no manejo do fole.

São volumes e são memórias. Não restarão muitos dos que os projetaram, fabricaram, venderam, manipularam. Mas muitos dos de agora lembram-se ainda do teca-teca-teca ritmado do sobe e desce das agulhas das máquinas de costura. Ora quem, como eu, teve a sorte de assistir às palestras em que Louzã Henriques apresenta as coleções aos visitantes, ficou a saber das humanidades dos que se socorreram daquelas ferramentas. Falou-se das mulheres para quem as velhas Singer e Oliva foram instrumento de libertação, umas mais afortunadas, nos trabalhos de modista, outras menos assalariadas, na condição operária das fábricas que iam surgindo. Umas e outras, ainda assim, donas de um novo destino que não era o da sujeição económica ao “chefe de família”. Quem lá tenha estado ficou a saber das qualidades da telefonia, novidade no juntar as gentes em torno das notícias – uns de ouvido na Emissora Nacional, outros à escuta da BBC no temerário recato dos tempos em que, nos campos da Europa, se lutava pela derrota da suástica; e ficou a saber de Carusos e Gardeis, um fio de voz timbrada competindo com o arranhar da agulha no sulco do velho disco. Da generalidade das máquinas, os miúdos preferem as de escrever, aparentadas ao computador, que delas herdou a organização do teclado mas prescindiu do trabalho braçal nas mudanças de linha, do corretor de fita branca que precedeu o delete e do papel químico anterior à invenção do ctrl+print com campo de indicação do número de exemplares.

Quantos de nós conhecem as coleções de Louzã Henriques? Alguns, certamente menos do que aqueles que sabem que a compreensão dos objetos é a chave de descoberta do presente e do futuro, passo das mesmas solas de que se desprende a tinta dos livros, as luzes dos filmes, as cores das telas, as marcas do cisel na pedra ferida. Pois, então, juntemo-nos à volta da mesa e inventemos, desta vez nós, a maneira de fazermos nossas as máquinas de maravilhamento da coleção Louzã Henriques.

Manuel Rocha escreve ao sábado, quinzenalmente

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