Opinião – Crónica sobre um país que estão a fechar

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JULIO MARQUES MOTAJúlio Marques Mota

Saio de Coimbra. A chuva cai copiosamente, não há sol, o dia está triste e saio da cidade, vou de “férias”, eu que não tenho já de marcar o ponto. De saída fecho bem a porta de casa. Aqui lembro-me de Edward Hugh, lembro-me da sua última reportagem sobre Espanha, sobre a sua frase sibilina que cito de memória: ninguém espera por Rajoy, ninguém espera por nada em Espanha, espera-se apenas que o último a sair de Espanha desligue as luzes e feche a porta.

Feche a porta, é a frase que se martela aos ouvidos e interrogo-me: será que eu não vivo também num país em que o seu povo está lentamente a fechar-se, a fechar a porta e a apagar as luzes?

Relembro dois acontecimentos recentes ainda em Coimbra. Vou comprar o jornal e o meu vendedor diz-me: sabe, morreu o Zé barbeiro. Lembro o Zé barbeiro, as suas mãos finas, não as mãos como as de Eduardo Mãos de Tesoura, mas as mãos de quem passou a vida a dar ares de elegante a quem o era e a quem o não era também. O Zé barbeiro de muita clientela que repentinamente se esfumou, o sector serviços que rebentou neste país que, de repente, um país cheio de gente sem dinheiro se transformou, o Zé barbeiro com empregados desde há dezenas de anos por si bem conhecidos e pelos seus clientes, o Zé barbeiro com despesas mensais e sem receitas para as pagar, esse suicidou-se, fechou ele não a porta de um país, fechou a porta da sua vida.

O meu vendedor de jornais ainda disse baixinho e para si mesmo mas que eu ouvi: era bom que o Gaspar soubesse disso. Contradição de monta: o meu vendedor de jornais é um homem de esquerda de boa cepa e de forte consciência. Tão forte que concordará com o que diz o José Vítor Malheiros: “a única preocupação de Gaspar é garantir que os portugueses se mantêm suficientemente activos para poder pagar aos credores e suficientemente passivos para permitir que o governo os roube sem tugir nem mugir. Como isso tem acontecido, o seu principal objectivo tem sido alcançado. Tudo o resto – o desalento, o sofrimento, a doença, a miséria, os suicídios, a emigração forçada, tudo isso é secundário”. Por outras palavras, Gaspar é um homem sem coração e o nosso vendedor de jornais sabe-o, e sabe-o com tanta ou mais certeza que eu. Olho-o, espantado, e saio. Lembro-me então do Edward Hugh.

Subo a rua, passo pelo meu farmacêutico a desejar-lhe boa Páscoa, eu, que sem ponto para marcar ia de férias. Diz-me: sabe, estive mal, fui parar ao Hospital, com complicações cardíacas. Fizeram-me uma série de exames e felizmente parece não haver nada, salvo muito stress, muito mesmo. Mas, pergunto eu, com a sua idade, cerca de 35, não entendo.

Lembra-se do medicamento que lhe vendi para o seu primo, ontem? Lembro, respondi. Pois é, dantes custava cerca de 20 euros e agora custa-lhe cinco euros e com a receita médica pagará 3,5 euros. Ou seja as minhas receitas desceram para um quarto do seu valor ou mesmo menos. As despesas com pessoal, como vê, essas mantêm-se. Adicione ainda os meus cortes num rendimento que já era baixo. E que faço ao pessoal, quando muito dele tem mais anos de casa que eu de vida? Diga-me? Só lhe respondi a ele que é um homem de direita, conservador: a crise há-de passar quando este povo de tudo isto e para tudo isto acordar. Aguente-se e não dramatize mais a sua situação, disse-lhe.

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