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Opinião: Psiquiatria excessiva

11 de novembro às 14 h16
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“Os Inventores de Doenças” de Jorg Blech (Edição portuguesa, Porto: Ambar, 2006) é um livro desafiante e corajoso que aborda certos trilhos de investigações científicas, nem sempre devidamente replicadas por outras escolas. O surgimento de novas visões concetuais é, então, admissível. Ou seja, poderão surgir na nomenclatura doenças pretensamente “escondidas” ou “menorizadas” que por uma qualquer razão emergiram para a luz do dia. No tempo de Napoleão Bonaparte, os psiquiatras precisavam de 10 diagnósticos para englobar todas as formas de loucura. Hoje em dia, no século XXI, as codificações internacionais (ICD-11 e DSM-5-TR), que incluem todas as variantes psiquiátricas, são mais de 300. O leque muito se abriu. A pergunta parece óbvia: mas será mesmo tudo isto sinónimo de insanidade mental?
Uma formiga vista à lupa parece um animal fantasmagórico de um filme de terror de Hollywood. Trata-se de uma figura de maximização. Uma distorção cognitiva a partir de um estímulo visual. O cérebro foi enganado. Todavia, jamais poderemos ignorar que a medida do medo ou do desespero de cada um, só é possível ser mensurada pelo protagonista desse sofrimento. E isso tem que ser respeitado.
O Homem pós-moderno, das últimas décadas, lida mal com estes “espinhos” da rosa. Só quer ver e cheirar as pétalas. Esqueceu que o arco-íris só vem depois da chuva. Que depois da noite, virá sempre o dia. Quando aquele pai que foi a correr à loja de animais comprar um cão igual ao que fora atropelado para que o filho não desse conta do que é a morte, iludiu a natureza do que é incontornável. É preciso chorar. A dor ensina e liberta. Há o risco desse rapaz estar embebido numa perigosa armadilha: todos temos que ser belos, perfeitos e poderosos. Não obstante, vai esmurrar os joelhos a andar de bicicleta e tropeçar nas pedrinhas da calçada. Que tripla falácia!
De facto, a ansiedade, o luto, a tristeza, são essenciais à construção da identidade e da personalidade. São algumas das traves-mestres do desenvolvimento. Por vezes, vemos por aí estudos que apontam para números inquietantes de quadros ansiosos e depressivos, inclusive sobre eventual ideação suicida, nos jovens. Um catastrofismo errado, até porque tais investigações não passariam num crivo apertado de análise das metodologias usadas. Há, portanto, o risco de se retirarem conclusões precipitadas. Não vão ao fundo dos problemas. Simplificando: ver doenças onde há apenas estados emocionais passageiros. Claro que convirá explicar que de entre a descrição e a listagem das patologias da ansiedade algumas são meramente situacionais, e não incapacitantes, exemplificadas em certo tipo de fobias simples (“medo de alturas, ratos ou aranhas”), muito aquém, portanto, da severa agorafobia (“medo de sair à rua ou de ir ao supermercado”) acompanhada de ataques de pânico recorrentes (“medo súbito de morrer de paragem cardíaca”). Esta dupla associação, sim, é comum. Se grave, poderá ser preocupante. Uma patologia, não um excesso.
No caso da ansiedade generalizada não é propriamente um quadro clínico constante e perigoso e surge entrelaçada com facetas temperamentais da personalidade e os contextos de vida. Aqui ocorrem adversidades, mas também resiliências. O comum dos mortais supera tais obstáculos.
É, ainda, muito comum a confusão entre sintomas depressivos e doença depressiva. Para esta última, há critérios a ter em conta, aliados ao fator tempo e ao bom senso clínico. Todos falam dos sintomas, até há escalas com pontuações, mas só excecionalmente se diz que o Homem tem duas semanas para se “levantar” ou “lamber as feridas”. Felizmente é o que acontece com grande parte dessas populações sofridas que utilizam as suas próprias ferramentas psicológicas de modo a superar contrariedades inerentes aos acontecimentos de vida.
Quando em outubro último, proferi no Lions Clube de Coimbra a palestra “Saúde Mental: conceitos e controvérsias”, evidenciei o potencial, absurdamente minimizado, da prevenção primária. É nas famílias com filhos menores onde grassa a fome, o alcoolismo, a exclusão, a doença, que uma sociedade civilizada deverá intervir. A solidariedade orgânica e a consciência cívica deverão ser pilares de um país. Caso contrário, fica ferida de morte a definição de saúde mental da Organização Mundial de Saúde: “bem-estar emocional, psicológico e social em que a pessoa sabe lidar com o stress do quotidiano, tem trabalho digno, casa, momentos de lazer, e é útil à comunidade”.

Autoria de:

Carlos Braz Saraiva

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