Opinião: O Senhor Orfeu
Vai a sepultar hoje (quarta-feira) Arnaldo Trindade, que se evidenciou pelo trabalho extraordinário de divulgação da música portuguesa através da sua editora Orfeu.
A música de Coimbra muito lhe deve, como agora foi salientado por alguns Amigos – que aqui cito, com a devida vénia.
Rui Pato evocou a amizade iniciada em 1969, na altura do contrato da Orfeu com José Afonso, acrescentando: “Sem este homem, a música portuguesa e a poesia portuguesa não seriam o que são. Não tenho palavras suficientes para homenagear a sua grandeza nem demonstrar o agradecimento pelo que lhe devo”.
Manuel Portugal referiu ser “um dia muito triste para a música portuguesa e, muito especialmente, para o Fado de Coimbra”. E explicou que, em tempos muito recuados, Arnaldo Trindade respondeu positivamente ao apelo de seu pai (o também guitarrista António Portugal) para que gravasse fados de Coimbra e baladas – o que abriu as portas à música portuguesa e contribuiu para que o fado de Coimbra “tivesse chegado até nós como chegou”.
Ainda há poucos dias um outro antigo estudante de Coimbra, Júlio Roldão, me falava da homenagem que foi prestada a Arnaldo Trindade, no passado dia 25 de Novembro, no Museu Municipal da Murtosa. E de uma outra que estava a ser preparada pela Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto. Numa das conversas com Arnaldo Trindade, Júlio Roldão desafiou-o a selecionar 10 discos, entre os cerca de dois mil que editou, tendo ficado “surpreendido pela lista inclusiva que escolheu”. É essa lista que aqui reproduzo:
“10.000 anos entre Vénus e Marte”, de José Cid; “Cantigas do Maio”, de José Afonso; “Gente Daqui e de Agora”, de Adriano Correia de Oliveira; “Atrás dos Tempos vêm Tempos”, de Fausto; “Semear Salsa ao Reguinho”, de Vitorino; “Pano Cru”, de Sérgio Godinho; “António Mafra nos States”; o LP “A Peça”, dos “Pop Five Music Incorporate”; “Amores de Estudante”, pelo Orfeão Universitário do Porto; “Fala do Homem Nascido” (poemas de António Gedeão interpretados por Carlos Mendes, José Niza, Duarte Mendes, Tonicha e Samuel).
Mas Arnaldo Trindade não se limitou a editar música. Desafiou grandes poetas portugueses para que gravassem discos a declamar a respectiva poesia.
Graças a essa iniciativa pioneira, podemos hoje ouvir, por exemplo, Sophia de Mello Breyner, Eugénio de Andrade, Daniel Filipe.
Importa referir que o primeiro a ser editado foi Miguel Torga. O próprio Arnaldo Trindade contava, orgulhoso: “Quando criámos a secção de discos, fui falar, obviamente, com o mais difícil”. E lá convenceu Torga. A gravação foi feita na loja de electrodomésticos de Arnaldo Trindade, de madrugada, para evitar o barulho dos carros eléctricos quando passavam na Rua de Santa Catarina. O poeta registou assim a experiência do seu “Diário VIII”:
“Miramar, 12 de Setembro de 1958 – Gravar poesia nossa… Entrar numa câmara de silêncio, ler versos e ouvir depois a própria voz desligada do corpo, sozinha, estranhamente exaltada ou enternecida, ora grave, ora aguda, áspera e suave no mesmo instante, mas sempre aflita, a clamar na solidão da noite como uma alma penada…”.
Na contracapa deste LP pioneiro, escreveu o editor: “Os poemas que vão ouvir neste disco são a biografia mais expressiva de Miguel Torga. Desde a dedicatória a ORFEU, com que começa, a ORFEU REBELDE, com que termina, todos dizem dele o que mais importa”.
Pois sobre Arnaldo Trindade e a sua Orfeu, o que mais importa é manifestar gratidão pelo muito que fez pela música portuguesa e pela música de Coimbra.