Opinião: O ódio deles matou-as
Há uns dias, ficámos a saber que três mulheres lésbicas foram queimadas vivas em Buenos Aires, na Argentina. Pamela, Mercedes e Andrea. Pamela sofreu queimaduras graves e morreu em poucas horas. Mercedes, sua mulher, morreu dois dias depois do ataque, com queimaduras em 90% do corpo. Andrea também faleceu. Sofia foi a única sobrevivente. As quatro mulheres, dois casais, partilhavam um quarto numa pensão social, quando foram atacadas pelo homem que vivia no quarto ao lado. Justo Barrientos terá atirado panos a arder, embebidos em gasolina, para o quarto das vítimas enquanto estas dormiam. A polícia está a investigar o ataque como um crime de ódio – e, de facto, não pode ser outra coisa. Barrientos já tinha ameaçado as mulheres várias vezes, chegando a dizer que as ia matar. As discussões, sempre de cariz homofóbico, eram recorrentes. O suspeito chamava “engendros” às vítimas, uma expressão espanhola usada para nomear alguém “deformado”. Um dos hóspedes da pensão, que tentou acudir às vítimas, conta que enquanto as mulheres tentavam fugir do quarto em chamas o suspeito do crime batia-lhes e empurrava-as para o interior. Foi preciso reunir um grupo de pessoas para manietá-lo. Quando conseguiram controlar o incêndio – que alastrou pelo edifício e fez vários feridos – os inquilinos levaram as mulheres para debaixo do chuveiro, mas era tarde demais. A morte demoraria poucas horas a chegar. Causa do óbito: ódio.
Esta tragédia surge depois de Javier Milei ter sido eleito Presidente da Argentina, após uma campanha fortemente marcada por um discurso de ódio, com vários comentários depreciativos e discriminatórios sobre lésbicas, gays, bissexuais e transgénero. Recorde-se que, em poucos meses, Milei fechou o Ministério da Mulher, do Género e da Diversidade e o Instituto Nacional contra a Discriminação, a Xenofobia e o Racismo; proibiu a utilização de linguagem inclusiva por parte dos membros do Governo; pôs fim aos programas de formação centrados no género; e anulou o decreto que exigia a igualdade de género nas empresas.
Ontem celebrou-se o Dia Internacional contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia, data coincidente com a retirada da homossexualidade da Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde. Foi em 1990, há pouco mais de 30 anos. Eu estava a caminho da Escola Primária, o 25 de Abril tinha sido há 16 anos e faltavam apenas 2 para a assinatura do Tratado de Maastricht, mas a homossexualidade ainda era encarada como doença, por entidades com responsabilidades acrescidas na matéria. Hoje ainda há mulheres queimadas vivas por causa da sua orientação sexual, como as bruxas nas fogueiras de um passado que parece cada vez menos distante.
A comunidade LGBTQ+ é constituída por um conjunto de homens e mulheres que exigem ao mundo o direito a ser quem são. É só isso que eles pedem: espaço e respeito para viver como são. A orientação sexual faz parte da nossa identidade pessoal. É também isso: como sentimos, como amamos, o que desejamos, quem queremos. Quem somos, com todas as peças que compõem o puzzle. O tratamento dado à diferença é um dos maiores indicadores de evolução de uma sociedade. Não há nada que mereça mais respeito e admiração do que alguém que se recusa a hipotecar aquilo que é. Amamos sem regras, nem definições – acima das regras e das definições. Não há Amor errado, ele é de todas as cores – e as cores, tal como as diferenças, tornam o mundo mais bonito. Infelizes daqueles que veem o mundo – e o Outro – a preto a branco.
Esta tragédia reuniu centenas de pessoas na Argentina, a exigir justiça para as vítimas. Nas faixas de protesto, pintadas por mãos combativas, lia-se uma frase mais rasgada do que desenhada: “eles mataram-nas”. O Amor é, naquilo que mais e melhor o define, indomável. Não há fogo que o consiga queimar, nem convenções que o possam domesticar. Mas do Amor – seja qual for a sua forma, cor ou rosto – mal nenhum, jamais, virá ao mundo. Já o ódio deixa sempre um rasto de destruição. Eles mataram-nas, sim. O ódio deles matou-as.