Opinião – O ilimitado
O ruído por conceito seria aquilo que representa ineficiência das máquinas, o excesso de som na rotina do dia, o ulular manifestando alegria. O ruído em mecânica é um pouco como o calor de um motor, é perda de eficácia no engenho. Ruído é zumbido, é ouvir o coração, seria sentir as pestanas a bater, os cabelos a crescer, o pulmão a encher e vazar. Ruído é o que as Câmaras nos oferecem em altifalantes nas ruas e nas praias. O ruído é tão desagradável como o tabaco dos outros, o mau cheiro por bónus, o perfume exagerado. Como em tudo na vida, o ruído é dependente do ouvinte. No limite, os surdos importam-se menos com a ostentação sonora dos municípios, mas um músico sofisticado mudará de praia quando ligam altifalantes.
E porque precisamos de ter sonoridades medíocres a debitar decibéis? Eu sou um cultor do som refinado, de uma aparelhagem Hi-fi, com cabos caros, colunas premiadas por audiófilos, leitores sem mácula, amplificadores sem equalização. Mas este meu ouvido aguçado pela pureza da música erudita e bom jazz, entra em convulsões com a boçalidade de alguns sons, tem convulsões que se transformam em terramotos quando vou a um café com TV e rádio e clientes em simultâneo aos berros. O pior é a rua da baixa com banda sonora, como se fosse uma película da série z.
Tenho rebuço com as igrejas onde os padres decidem aumentar o ruído em vez de as inundar de luz e Sol. Sentar e meditar quentinho é bem melhor que gelado e distraído pelas baladas indescritíveis dos rádios. Quem nunca se sentou numa catedral cheia de vitrais, onde bate o majestoso Sol, e ali sozinho, ou com a melhor companhia, reflete sobre a vida? É como passear na praia sozinho ou com um cão sereno. O som das matas é enorme se nos sentarmos sossegados num banco de jardim. Não carece de acréscimos, não precisa de envolvente sonora. Os pássaros, a dança das folhas, o vento empurrando, arrastando, zumbindo são a dádiva da tranquilidade. Há uma magia naquele peso do silêncio das bibliotecas, dos cafés onde pela manhã se lia o jornal. Enrugar a vida com ineficiências como excesso de calor, excesso de músicas, excesso de informação, excesso de cor, excesso de gente, perturba o prazer, impede o romantismo, destrói o par, impede a reflexão.
O que mais temos nos tempos de hoje é zumbido a despropósito, discursos que amedrontam, indignante desconfiança, ululante manifestação do eu, vaidade contundente. Manuel Maria Carrilho aborda este tema pelo prisma da síndrome do ilimitado no seu livro mais recente. Vale a pena ler. O filósofo está de volta.