Opinião: “Escrever (direitos humanos) nas estrelas”
Não, não é estragar – é tentar descobrir. E não, não é apatia – é tentar perceber. Não há criança digna dessa condição que não tenha esventrado o brinquedo mais sofisticado que a bolsa natalícia ou aniversarial lhe tenha posto nas mãos; ou que não se tenha deitado de costas na terra nua a olhar para cima nas noites estreladas. Descobrir “como é por dentro” é coisa da natureza humana, impulso que procura solução para os mistérios da vida, seja a fala de uma boneca de plástico ou o pontilhado das estrelas.
Abençoada curiosidade, que foi inchando de importância até se transformar na poderosa ferramenta a que chamamos ciência. Nestes dias, então, ciência é assunto permanente, cada um de nós à procura, nessa gente de bata branca e luvas de latex, da solução para a nossa vida ameaçada por um vírus a quem só os cientistas viram os contornos da coroa. A esperança é, nesta altura, mais um dos muitos significados da ciência.
De vez em quando um nome desponta dessa população que escolheu fazer profissão do impulso da curiosidade (mal a família suspeitava que aquele estragar brinquedos ou somar constelações era, afinal, o início de um caminho capaz de produzir felicidades). O Nuno Peixinho, cientista nesta Coimbra em que também se olha para o céu, é um desses nomes. Apareceu nos jornais do país inteiro porque “( 40210 ) Peixinho” passou a ser nome de asteróide. Não é coisa pouca, sabendo nós que esses pedaços de matéria em movimento tanto podem ser encantamento – como o das estrelas cadentes – como a ameaça que levou desta para melhor os dinossauros do tempo antigo. Haja, por isso, quem olhe para o céu e veja mais do que outros sabem ver.
De paradoxos é, porém, feita a governação da nossa terra, capaz de pôr euros aos milhões nas mãos da ladroagem de copo na mão e salamaleque, mas incapaz de dar um contrato de trabalho ao Nuno Peixinho e aos milhares de investigadores que sucessivos governos vêm usando e desprezando, por si próprios ou a mando da tal “europa”. São “bolseiros” de investigação, diz o ministro Manuel Heitor e os que o precederam, executores de políticas que enchem a boca de “ciência” mas atiram ao cidadão Nuno Peixinho, aos 50 anos, o insulto que diz assim: “os bolseiros de investigação não devem ter [contrato de trabalho]. Nunca foi ambição, nem deve ser, transformar as bolsas de investigação em contrato de trabalho”.
O ministro Manuel Heitor não tem razão. Os “bolseiros” de investigação são investigadores, trabalham como investigadores, veem o seu trabalho de investigadores internacionalmente reconhecido, estão intimamente ligados a todas as pesquisas científicas que se desenrolam neste país (e fora dele). Sem “bolseiros” não haveria ciência em Portugal. Os “bolseiros” de investigação são trabalhadores mas não têm direito a segurança social, a licença de parentalidade, a certificação de rendimentos que lhes daria acesso ao crédito à habitação, a férias, à remuneração que é o mais básico dos direitos laborais, ao subsídio de desemprego. Muitos dos investigadores chegarão à idade da reforma sem direito à retribuição natural após uma vida de serviço público.
A palavra a Nuno Peixinho: “a precariedade interessa a muita gente, particularmente aos inúmeros fossilizados líderes das entidades do Sistema Científico e Tecnológico Nacional, das Instituições de Ensino Superior e das suas tutelas. Herdeiros de direitos para si conquistados pelos seus pais, subtraem [esses direitos], conscientemente e sem escrúpulo, a todos aqueles que sustentam essas mesmas instituições, que formalmente lideram e cuja glória arrebanham. Nada esperemos de nenhum: só teremos o que conquistarmos!”
Quem fala assim escreve nas estrelas. Com a prontidão e a dignidade de que a Terra tanto precisa.