Opinião: E depois da pandemia? – 2
Como prometi no mês passado, volto ao tema da pandemia, mas agora sob a perspetiva do seu impacto no Serviço Nacional de Saúde. Durante todo este tempo, o nosso SNS esteve debaixo de fogo, por boas e más razões. Conquanto o espaço que me é dado não permita uma análise profunda, irei abordar alguns aspetos que me parecem essenciais.
A maioria dos portugueses ( 73,2%) dá agora nota positiva ao SNS pela forma eficaz como tem respondido à pandemia. No entanto, cerca de um quarto dos utentes afirma ter deixado de recorrer, pelo menos uma vez, ao SNS por receio de se deslocar a um hospital ou centro de saúde. A pandemia teve, pois, consequências diretas no acesso aos cuidados de saúde. No primeiro ano houve uma redução de 46% nas consultas médicas presenciais nos centros de saúde, de 40% nas urgências hospitalares e de 25% nas cirurgias. Calcula-se que ficaram por fazer mais de 100 mil cirurgias e 600 mil consultas.
A área oncológica foi uma das mais afetadas, a todos os níveis, desde o cancelamento de consultas e rastreios, até ao adiamento de tratamentos. Os doentes foram diagnosticados mais tarde, o que vai repercutir-se na capacidade de resposta de tratamento. O mesmo se aplica aos doentes cardíacos, especialmente os de doença coronária: A pandemia reduziu em mais de 27% a admissão de doentes por síndrome coronária aguda. Segundo a Ministra da Saúde, em 2021 fizeram-se tantas consultas e cirurgias como no ano pré-pandémico, contudo os doentes que foram ‘negligenciados’ durante o ano de 2020 ainda não tiveram a resposta necessária. Neste momento, existem muitas pessoas que têm um cancro ou doença coronária em evolução e não sabem.
Os números de 2021 são não só resultado do investimento que o Ministério fez no regime excecional de recuperação de atividade mas também de “um enorme desgaste” dos profissionais. Em janeiro de 2022, a OMS-Europa distinguiu os nossos profissionais de saúde em “reconhecimento da dedicação e do compromisso permanentes para melhorar a saúde e o bem-estar dos cidadãos”. Mas há consequências, ainda por avaliar, do esforço que foi feito. Os profissionais estiveram sujeitos a uma enorme pressão durante a pandemia. O absentismo cresceu 22%. Alguém afirmou que “a resiliência tem limites e é provável que muitos profissionais abandonem o SNS no fim da pandemia”. Após quase dois anos, a retenção e desenvolvimento dos profissionais do SNS é a nossa principal preocupação.
Uma outra questão é a da organização dos serviços. A pandemia demonstrou a inquestionável indispensabilidade de um serviço público que garanta o acesso a cuidados de saúde e dotado de meios materiais e humanos para uma resposta atempada e eficaz a situações de emergência sanitária, a par de atividades correntes de prevenção e de tratamento da doença, o que não foi conseguido.
O bastonário da Ordem dos Médicos afirmou que é “importantíssimo modernizar o SNS, tornando-o mais competitivo, porque tem a capacidade para o ser… para que prospere e continue a superar os desafios que a saúde exige”. Mas a pandemia demonstrou evidentes dificuldades de coordenação, de planeamento e de gestão. E “adiou-se a resolução de problemas de fundo do SNS: o atraso na integração dos cuidados, as desigualdades no acesso, a falta de profissionais, as graves lacunas nos cuidados continuados, na saúde mental e na saúde pública e o difícil relacionamento com o setor privado”. Que não se compreende; recordo aqui que a recente Lei de Bases da Saúde dita que “quando o SNS não tiver, comprovadamente, capacidade para a prestação de cuidados em tempo útil, podem ser celebrados contratos com entidades do setor privado” (Base 25, nº1 ).
Finalmente, temos a velha questão do financiamento do SNS, já por mim aqui abordada. Pela primeira vez, as despesas com a saúde atingiram 10,1% do PIB, o valor mais elevado desde 2009, e a despesa pública ultrapassou 67,6% dos encargos totais. Isto é, “gastou-se mais mas fez-se bem menos, o que demonstra a ineficiência dos serviços”, afirmou Manuel Delgado, Administrador Hospitalar. Ainda assim, o Conselho Estratégico Nacional da Saúde alertou recentemente para o “grave subfinanciamento” do SNS, que apresentou um défice de 1.100 milhões de euros em 2021. A questão, a que é fundamental responder, é até que ponto podem as finanças do País suportar as sempre crescentes necessidades.
Em conclusão, os desafios que o SNS, e o Sistema de Saúde em geral, enfrentavam no período pré-pandemia saem intensificados por ela. As reformas necessárias na Saúde tornaram-se cada vez mais prementes. É fundamental desenvolver e inovar a organização do SNS, implementar uma política de recursos humanos e fortalecer as relações entre os setores público e privado.
Sem isso, não vamos lá…