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Opinião: Conhecer a morgue

16 de julho às 12h20
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No final de um fatídico dia de agosto de 2000, já a noite instalada, irrompem-me pelo gabinete na Embaixada em Bissau, dizendo que acabara de chegar, de carro, “um cidadão português morto”. “Sr. Cônsul, o meu marido morreu”, brada-me uma jovem senhora. Liguei imediatamente para o hospital Simão Mendes, convencendo-os que ali iria aparecer, em breve, com um corpo.
Lá chegados, o ajuntamento era grande. Pessoas reclamavam familiares há horas entrados para observação, enquanto outros sentados junto ao declive que leva ao banco de urgências assistiam impassíveis a este jogo de resistência. O médico que nos recebeu foi perentório. “Este homem está morto, presumo que por coma diabético”, e ordenou que o transportássemos para a morgue. Seguimos, pelas traseiras, rumo ao Instituto Médico-Legal, envoltos pela escuridão. Estrada interna aos solavancos, carregada de buracos e uma pequena construção, com as portas semicerradas onde se via uma cama feita de pedra. Defronte, o edifício da Pediatria, completamente às escuras.
Temia uma autópsia noturna, apressada. Carregámos o cadáver para uma mesa fria e despimo-lo, sem qualquer pessoal médico auxiliar. “Dois problemas, Sr. Cônsul: não temos lençol para tapar o cadáver nem câmaras frigoríficas a funcionar para o conservar”. Choque. Expliquei que, obviamente, não haveria autópsia sem autorização da família, por mais argumentos legais que me invocasse.
Falei então com o Adido da Cooperação. Ele iria a casa buscar um lençol; eu, ao Mercado de Bandim, comprar duzentos quilos de gelo-escama para a morgue, acompanhado de um elemento do GOE -Grupo de Operações Especiais. A noite em Bissau escondia, então, outros perigos.
Acabada a funesta missão, regressei à Chancelaria e acordei a jovem, sedada nos braços da minha secretária, para lhe pedir algo de que me vim a arrepender. Solicitei-lhe os contactos da família mais próxima, para ser eu a comunicar o desaparecimento do ente querido.
Seriam perto das duas da manhã em Lisboa. Atende-me uma voz feminina. “Minha Senhora, boa noite. Fala o Encarregado de Negócios da Embaixada de Portugal em Bissau. Estou a ligar para lhe comunicar o triste desaparecimento do Senhor fulano de tal”. Silêncio profundo. “Guiné-Bissau? Não estará porventura a falar-me da parte da p### que anda com o meu marido?”
Remédio Santo. Nunca mais telefonei a ninguém a desoras e muito menos para comunicar este tipo de notícias.

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