Opinião: Fazer a guerra é fácil, difícil é fazer a guerra à guerra
A família em que nasci (e cresci) não era adepta da guerra. Nem sequer da guerra-a-brincar. No tempo em que os miúdos sonham com o paradoxo de receber uma metralhadora na pacífica quadra de Natal, o Menino Jesus negava-me, ano após ano, o presente que quase todos os meus amigos exibiam nos derradeiros dias de férias. A muito custo pude conceber, na carpintaria do senhor Pocinho, de Condeixa, uma pistola a partir de duas sobras de madeira e um prego. E nos dias a seguir pude combater em igualdade de circunstâncias com o Tino, o Gonçalo, a Cristina, o Jorge, o Quim e os outros guerreiros da minha Frei Tomé. Pouca guerra. Os combates acabavam com o chamamento das mães para jantar, numa demonstração de eficácia muito superior à de qualquer secretário-geral da ONU.
Aprendi a recusar a guerra sem nunca lá ter estado, e só na juventude pude experimentar a sensação, ainda que em paz, de ver os mísseis passarem à porta de casa e o chão estremecer sob as lagartas das colunas de tanques a caminho da parada. Uma vez viajei para a Sarajevo destruída, para acompanhar o tão belo canto de Lena D’Água, num 10 de Junho ao pé dos soldados portugueses ocupantes de um país de soberania assassinada. Atravessámos a cidade destruída, o país destruído, as crianças nas aldeias jogando à bola na borda de campos minados, recuperando depressa a vida que lhes foi roubada.
Na família que ajudei a fazer nascer não se gosta da guerra, ainda que o Menino Jesus tenha alguma vez aberto, aqui, mais cordatas mãos para a oferta de uma pistola de setas coloridas. Não percebo este esquecimento dos ofertadores. Porque, um par de anos antes, a minha filha de quatro anos tinha banido da sua playlist uma das canções preferidas – a Balada Del Soldado, de Mafalda Veiga – no dia em que lhe traduzi “Madre, sabes quien maté? / Aquel soldado enemigo era mi amigo José / Compañero de la escuela / Con quién tanto yo jugé / de soldados y trincheiras”. Aquela canção nunca mais foi tocada para a menina amargurada pela morte de um José do seu recreio, que não existiu mas foi chorado.
Estes são os dias piores para falar da guerra. Pela injustiça da guerra que passa na TV e pela injustiça de todas as outras guerras silenciadas. Estes são os piores dias para se falar da complexidade dos caminhos da guerra, já que a perfídia, quando é continuada, encontra sempre na frivolidade o caminho da absolvição. Estes são os piores dias para “visitar” a guerra, conduzidos que vamos sendo pelos caminhos do ódio – é sempre assim nas guerras a sério (no campo de batalha e fora dele): nas traseiras da linha de fogo há vizinhos que aproveitam a onda de choque para a vingança soez, abrindo feridas na verdade e na honra alheia, semeando armas nas mãos de quem nunca as empunhou, fazendo explodir incautos nas minas da manipulação. É da História.
Saiba-se, ao menos, que os combatentes pela paz não temem o campo de batalha. E que darão o corpo às balas na luta contra os semeadores de mais bombas e costumeiro ódio – é da História, também -, combatendo (porventura sozinhos) nos lugares todos do mundo, de cada vez que às crianças seja roubado o direito ao sono sem pesadelos.