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Opinião: Atira-te daqui abaixo, porque está escrito

13 de setembro às 15h45
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Numa conhecida passagem da Bíblia, o diabo conduz Cristo ao pináculo do templo de Jerusalém e convida-O a atirar-se, argumentando com o Salmo 90: “Aos seus anjos dará ordens a teu respeito, e nas mãos te levarão, não aconteça que tropece numa pedra o teu pé. “ Cristo, por sua vez, responde secamente, citando também a Escritura: “Não tentarás o Senhor teu Deus.”
Comentando esta passagem, o Pe. António Vieira argutamente sintetiza: “as mesmas palavras, que tomadas em verdadeiro sentido são palavras de Deus, tomadas em sentido alheio, são armas do Diabo.” Os juristas conhecem bem este problema e judiciosamente insistem na importância da finalidade (a teleologia) como critério interpretativo das leis: até as melhores leis, aplicadas de forma literalista e descontextualizada, podem conduzir a resultados absurdos.
A atualidade deste problema assume particular evidência num momento em que o Afeganistão é tristemente tomado por “estudantes” (taliban, em afegão) de “teologia islâmica”, que se caracterizam, para além da sua brutalidade, pela sua interpretação literal da Sharia (lei islâmica). A manipulação, diabólica, da religião e da espiritualidade, para servir objetivos estritos de controlo e poder, não é nova nem exclusiva do Islão, como bem sabemos da nossa própria história. No caso do Cristianismo, os processos históricos de captura da religião pelos poderes instalados (começando ainda no império romano) e da sua progressiva libertação (culminando no movimento iluminista do século XVIII) foram longos e complexos. Apesar das enormes conquistas que, para o próprio Cristianismo, significaram contribuições como a separação da Igreja e do Estado ou a declaração universal dos direitos humanos, as pulsões extremistas “cristãs” continuam a dar um ar da sua falta de graça, disfrutando de teorias da conspiração e tentando ganhar força política à custa das fragilidades da liberdade e da democracia.
Tal como aconteceu com o Cristianismo, a libertação do Islão só pode ser feita a partir de dentro, através dos sectores capazes de promover interpretações compatíveis com a dignidade humana. Os intelectuais islâmicos moderados têm um papel a desempenhar bem mais relevante e duradouro do que o desempenhado pela força das armas, conforme ilustra o relato lendário do comentário de Luís XVI, em plena Revolução Francesa, perante o retrato de Voltaire e Rousseau: “Ces deux hommes ont perdu la France.” (Estes dois homens conduziram a França à perdição.)
A todos nós compete antes de mais reafirmar o primado da dignidade humana, rejeitando claramente os rebentos “talibãs” (de inspiração “cristã”, “islâmica” ou outra) que vão tentando despontar até onde a liberdade, os direitos humanos e a democracia parecem consolidados. E dando todo o apoio aos sectores islâmicos moderados para que encontrem o seu próprio caminho para o iluminismo do Islão. É no âmbito da lógica da solidariedade, do acolhimento e do diálogo que se insere o recente apelo do antigo Presidente Jorge Sampaio a uma maior colaboração da sociedade portuguesa com a Plataforma de Acolhimento a Estudantes Sírios, criada em 2013 e que agora prepara um programa de emergência de bolsas de estudo e de oportunidades académicas para jovens afegãs. Este último legado de Jorge Sampaio é valiosíssimo entre todos os tesouros que nos deixou.

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