Opinião: Entre a memória e o desejo
Memória e desejo são dois componentes da vida, humana e animal. Pela memória aprendemos e preparamos a sobrevivência, nossa, da espécie e da vida em geral. Pela memória também moldamos os nossos desejos. Não desejamos aquilo que antes nos doeu, tendemos a desejar as coisas que antes nos agradaram. E é assim que o nosso passado condiciona o nosso futuro e, com isso, nos aprisiona. Será possível libertarmo-nos?
Podemos dizer que, se a memória é o nosso passado, o desejo tem a ver com o futuro. Viver na memória é, de certo modo, viver no passado. Viver no desejo é viver no futuro, apreciar antecipadamente o prazer que desejamos. Mas nenhuma destas situações permite desfrutar o presente com abertura e liberdade. No fundo, a nossa vida é vivida no presente, e poucas vezes o sabemos aproveitar.
E tanto a memória como o desejo nos colocam várias armadilhas. O desejo está muitas vezes centrado no prazer imediato que é sempre insuficiente e a médio prazo nos faz sofrer mais. Quanto à memória humana, ela é mais complexa do que pode parecer. Por um lado, existe a memória implícita, que não se pode descrever, e a memória explícita ou declarativa, aquela a que temos acesso fácil, mas que não inclui, necessariamente, a nossa experiência. A memória declarativa pode mesmo incluir a memória autobiográfica. Mesmo que não tenhamos estado no Japão, sabemos (e declaramos) que Tóquio é a sua capital, e podemos descrever outros pormenores, incluindo a sua história, assim a tenhamos estudado e aprendido. Do mesmo modo, podemos “recordar” episídios da nossa vida, não porque eles tenham acontecido, mas porque, de algum modo, nos convenceram ou nós nos convencemos de que eles aconteceram realmente.
Assim, a memória humana é muito falível e, nos últimos tempos, têm-se descoberto condenados que se auto-incriminaram de crimes que, na verdade, não cometeram.
E são igualmente conhecidas pessoas que, por lesão de certas estruturas cerebrais (o hipocampo), tenham vivido e aprendido com sessões de treino de que não se recordam. Por outro lado, a memória pode ser reprocessada por métodos psicológicos específicos (o EMDR – Eye Movement Desentization and Reprocessing). Algumas memórias podem, assim, ser apagadas, e substituídas por outras menos (ou mais, se a ética for esquecida) dolorosas. Num caso extremo de procedimentos aparentados, é possível fazer com que uma pessoa rememore acontecimentos de “vidas passadas”, de modo a explicar os infortúnios da sua vida actual.
Por muito que a memória declarativa seja a mais usada, a memória implícita parece ser, incomparavelmente, mais importante na determinação dos nossos comportamentos, o que é apontado por estudos de diversas proveniências. Mas o facto é conhecido desde os tempos de Freud, que sempre procurou as razões “inconscientes” na determinação do comportamento, especialmente aquele que parecia patológico. O objectivo dos psicanalistas é tornar consciente aquilo que antes era inconsciente, permitido que a pessoa enfrente e resolva os seus conflitos. Aliás, este é, genericamente, o objectivo de todas as psicoterapias.
Milénios antes de Freud, porém, existiam as práticas orientais, como o Budismo, com vista a enfrentar e parar o sofrimento, e aceder à felicidade. Hoje, elas estão espalhadas pelo Ocidente, com a prática de vários tipos de meditação e de versões ocidentalizadas (Mindfullness) dessas práticas. Não foram indiferentes a vários psicanalistas e neurocientistas que se dedicaram ao seu estudo e discussão. Na base de todos eles, está uma atenção ao corpo e sua actividade, nomeadamente a respiração e a pulsação cardíaca que sempre persistem enquanto vivemos. Mais do que a atenção ao eu ou ao corpo, estas práticas evoluem para a indagação da própria consciência, com benefícios para os seus praticantes. Trata-se de viver o presente com liberdade. Se o leitor não acredita, não há como experimentar.