No passado dia 20 de julho celebrou-se o Dia Nacional da Doação e Transplantação de Órgãos, instituído em 2019 e “destinado à realização dos atos comemorativos da doação e transplantação de órgãos”. A atividade da transplantação de órgãos humanos é uma das áreas mais reconfortantes da carreira de um cirurgião. No caso do coração, é literalmente dar uma nova vida a um doente que está, geralmente, a poucos meses, semanas, ou mesmo dias de a perder. Para a equipa que faz este ato é, pois, um momento feliz e muito emocionante.
Contudo, esta emoção não nos faz esquecer que por detrás do transplante está, na grande maioria dos casos, a morte de uma pessoa, o dador, embora haja casos de transplantação de órgãos de dador vivo, especialmente do rim. A doação de um órgão ou parte dele, em vida é, naturalmente, uma dádiva muito especial. Geralmente é feita por um membro da família do recetor, mas agora existe a possibilidade de ‘doação cruzada’, que permite que o órgão seja utilizado noutra pessoa, o que é uma prova de solidariedade extrema de ambos os lados.
Voltemos ao ‘dador cadáver’. A lei portuguesa dita que todos somos dadores de órgãos após a morte, a menos que, em vida, nos registemos no Registo Nacional de Não-dadores (RENNDA), criado em 1994. Desde o início do registo houve apenas 37.580 inscritos, correspondendo a 0,36% da população portuguesa. Esta é, pois, uma lei muito liberal que coloca o nosso País em 3º lugar de taxa de doação do mundo. Mas, ainda que respeitando a vontade dos que se inscreveram no RENNDA, esta taxa deveria ser zero. Não custa nada, naquele momento já não precisamos dos órgãos! E assim, mesmo depois da morte, praticamos uma obra de caridade.
Mas há, ainda, outros atores nesta história. Os familiares dos dadores. A família não pode alterar esta situação depois da morte. Nestas condições, lidar com o ente ou entes mais próximos, e a sua dor, exige cuidados especiais para evitar, tanto quanto possível, conflitos num momento tão difícil quanto crucial. Lembro-me, logo no princípio da nossa atividade de transplantação, de uma jovem esposa que, confrontada com a morte do seu companheiro e a iminência da colheita de órgãos, pareceu surpreendida, com um misto de raiva e impotência. Foi uma reação breve, recompôs-se rapidamente e pediu apenas que lhe dessem “uma meia hora a sós” com o seu amor, o que, evidentemente, lhe foi concedido, sem nenhuma consequência nociva.
Para melhor ilustrar o papel da família, trago aqui uma carta dramática que a mãe de um dos nossos dadores me dirigiu e aqui transcrevo na íntegra, omitindo apenas os detalhes que pudessem desvendar a sua identidade:
Faz hoje um mês que o senhor e a sua equipa procederam ao transplante do coração recolhido do corpo de um jovem de 34 anos. Esse jovem foi alguém muito querido e amado. Foi uma pessoa de ideais, de valores e de projetos para a vida e para a sociedade. Tinha grandes qualidades pessoais e profissionais…Gostava do que fazia, tanto na área profissional como nos seus hobbies, ligados à natureza e à agricultura. Respeitava os animais e adorava os seus animais domésticos. Inteligente e sensível, detestava a mediocridade dos que julgam tudo saber e não tolerava a mesquinhez de carácter.
Num dia de calor excecional, o esforço físico que não mediu e o anticoagulante que estava a tomar deram um resultado fatídico… Pela vossa competência e pela generosidade na disponibilização dos vossos conhecimentos a favor dos outros, só posso pensar que o transplante foi bem-sucedido.
O coração que transplantaram é parte de mim. É meu. Foi gerado nas minhas entranhas. Ainda que ferida pela adversidade, estou cá, respiro… E, por mim e pelo meu filho, gostaria que fizessem saber à pessoa (homem ou mulher, nova ou menos nova) que tem em si esse nosso coração (meu e do meu filho), que desejo, que exijo, que o estime, que o cuide e que seja merecedor dele. Para que ele possa bater por longo tempo no seu peito e possa contribuir para a felicidade do seu portador e dos que lhe querem bem…
Pelo que soube de si, só posso pensar que é a favor da medicina humanizada e com certeza que a equipa que lidera comunga do mesmo ponto de vista. Entenderão, portanto, a minha necessidade de vos fazer chegar estas palavras.
Com muita dor, com muito amor,
Uma mãe que só agora arranjou força para escrever este texto.
Como a dor de alguns se pode facilmente transformar na felicidade de outros. E sem rancor!
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