Opinião: A cabra chama por nós

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Vivi em Moscovo, entre os 20 e os 26 anos, naquele tempo em que se vive a dobrar, memorizando impressões que a juventude agarra e não larga nunca mais. Nos anos de 1980, a imagem em tempo real, disponível num ecrã de bolso, ainda não existia – longe era mesmo muito longe. Havia cartas, que iam e vinham à velocidade (lenta) dos transportadores, havia ligações telefónicas internacionais que, para um curto conversar, eram demasiado caras. Por isso, a atualização de imagens da minha terra, da minha gente, acontecia de ano a ano, nos sessenta dias de julho e agosto em que retomava Coimbra e a Berlenga – as minhas estações de Portugal.
Vinha e regressava de comboio. Primeiro, desde a Estação moscovita de Bielorrusky Vokzal à Gare du Nord de Paris, passando por Brest, pelas searas da Polónia, por Berlim com muro, Colónia e Liège. Depois, em Paris-Austerlitz, embarcava no Sud Express, o comboio dos emigrantes e da malta do Inter-Rail. Chegava a Coimbra com a ansiedade própria dos reencontros, da mitigação da saudade. Pedia sempre ao meu pai para não subir à Conchada pelo trajeto da Rua de Aveiro. Queria reconhecer Coimbra. Da primeira vez que desembarquei Estação Velha surpreendeu-me a crescente fealdade da Cidade – o Monte Formoso a encher-se de “caixotes”, a Fernão de Magalhães acentuando a desgraça urbanística que ali está, a cidade “nova” ano após ano mais “pato-bravada”.
Em cada regresso, naquela primeira volta seis vezes repetida, constatava, desgostoso, que Coimbra não tinha digerido a Torre do Arnado, nem retomado as rotas dos elétricos, nem recomposto a destruída Navarro. Mas no campo de batalha em que a urbe ia sucumbindo às ofensivas da especulação imobiliária e do provincianismo novo-rico, uma Coimbra salvava-se ainda. Passada a fronteira da Rua da Sofia ao pé de Santa Justa, as paredes altas dos velhos Colégios permaneciam e, ao fundo, sobre a colina, lá estava a Torre da Universidade, por detrás do Colégio dos Órfãos aonde o fogo chegou um dia, mas os pato-bravos ainda não.
Naqueles dias de reencontro com a Cidade permanecente passei a olhar para cima, encantado. Reparei nos beirais, nas gárgulas, nos recortes de madeira e nos painéis de cerâmica, nas portadas exteriores de madeira vivida, nos capitéis, nos frisos. E, ao nível dos olhos, reparei nos estendais, nos canteiros, nos velhos perscrutadores do caminho alheio. Já não havia, então, a presença sonora dos pregões naquela Coimbra que começava a aprender o significado de um novo palavrão (de uma nova realidade): gentrificação.
Faz agora 10 anos que o território pelo qual se estende a Universidade de Coimbra – Alta e Sofia passou a integrar a Lista do Património Mundial da UNESCO. Não tive nada a ver com o processo conduzido pela equipa do então Reitor Seabra Santos, mas apraz-me constatar que o território agora classificado seja aquele em que encontrei identidade, nos dias depois de Moscovo (em que as saudades mudaram de direção). Nesta Cidade crescentemente descaraterizada, celebrar o Património é celebrar os edifícios e suas funções, o Fado e as demais canções, a língua portuguesa, os moradores de um Património que não pode ser um cenário desabitado em regime de aluguer de curta duração. Coimbra merece o nosso envolvimento.

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