Recentemente, o Presidente da República considerou necessário dirigir-se à Nação para abordar o passado e o futuro da sua relação com o governo actualmente em funções. Muitos comentadores anteciparam o que iria acontecer, depois de surpreendidos que foram pela decisão do primeiro-ministro em não aceitar a demissão apresentada pelo ministro das infra-estruturas – Galamba – e, por isso, mais do que a queda do governo, previam que o Presidente iria dissolver a Assembleia da República, pois tinha emitido um comunicado a divergir em 180.º da decisão de António Costa, que afrontou directamente o Presidente.
A solene ocasião, agendada para ser transmitida pela televisão, em directo e em horário nobre, tinha todos os ingredientes para ser marcante na vida política portuguesa. E durante os minutos iniciais da comunicação ao País, tudo parecia confirmar-se. A humilhação, que é um eufemismo para o que o Presidente da República disse do ministro Galamba, não parecia dar margem para outra decisão que não fosse demitir o primeiro-ministro ou dissolver a Assembleia da República.
Mas Marcelo consegue sempre surpreender e, depois de arrasar por completo o passado, abriu as portas do futuro em nome da estabilidade. Sim, Marcelo afirmou, sem sombra de dúvidas, que esteve em causa o normal funcionamento da democracia. Mas optou, na avaliação relativa que fez, por manter em funções o governo que não exonerou o ministro “anormal”. Disse-o sem peias: que a estabilidade está acima da irresponsabilidade dos membros do governo, que a estabilidade está acima da falta de credibilidade, autoridade e confiabilidade. Que tudo visto e ponderado, a garantia de estabilidade constitucional sobrepõe-se a membros de um governo responsáveis por cenas rocambolescas, bizarras, inadmissíveis ou deploráveis (as palavras não são minhas!). Ficou, contudo, implícito que para o Marcelo não havia alternativa governativa que saísse de um acto eleitoral subsequente a uma dissolução da Assembleia da República.
Agora, o Presidente vai ser novamente, e frontalmente, contrariado, pois a Assembleia da República vai ultrapassar o veto presidencial da Lei da eutanásia, confirmando o voto por maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções ( 116 em 230 ). Marcelo, antecipando o problema, já afirmou que só vetou por “um problema de precisão”, e considerou que a confirmação “não tem drama”.
Pois não, é só a vida das pessoas que está em causa. Nada parece valer mais do que a abstracta estabilidade e, acima de tudo, popularidade. A qualquer custo, mesmo que menos do que 2/3 dos votos da AR. Sem problemas de consciência, apesar de quem nele votou.
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