Ao analisarmos a história das nossas sociedades modernas, ocidentais, capitalistas, identificamos uma aparente contradição entre o que significa a ideia de ‘conforto’ e a necessária transição ecológica, no sentido em que os padrões de consumo ocidentais são identificados como medida de bem-estar, tal como tem sido invocado em todos os tratados e acordos internacionais. Ou seja, generaliza-se a ideia de que quanto mais consumimos ou quanto mais podemos consumir, maior é o nosso bem-estar, o nosso conforto e a nossa felicidade.
Assim, o consumo é considerado o meio pelo qual alcançamos conforto, bem-estar e felicidade. Portanto, o busílis da transição ecológica reside neste ‘conforto’ apenas alcançável através do consumo e nos padrões deste ‘conforto’ que, culturalmente, aceitamos como universais, pois são eles que ameaçam a sustentabilidade e o equilíbrio socioecológico.
Esta ameaça é duplamente problemática porque, e ao contrário do que parece, além de esses padrões serem contextuais, cultural e socialmente contingentes, por um lado, a pressão ecológica que vivemos questiona de alguma forma a legitimidade e a expectativa de que sociedades onde esse ‘conforto’ ainda não foi alcançado, possam chegar a alcançá-lo, por outro lado, seguindo como modelo os padrões de ‘conforto’ daquelas sociedades que mais contribuíram para o aquecimento global.
Identifica-se, assim, uma associação simbólica entre consumo e bem-estar/conforto que está profundamente enraizada no modelo de sociedade ocidental e que tem sido tratada em várias áreas do saber e por diversos autores que enfatizam o lado material da vida, o consumo, enquanto expressão do estatuto social que se reflete na autoestima, na satisfação temporária e na validação social. Neste contexto, o ‘conforto’, frequentemente associado à conveniência, luxo, facilidade, tornou-se um aspeto definidor do estilo de vida ocidental e que Marcuse, no seu livro One-Dimensional Man: Studies in the Ideology of Advanced Industrial Society, analisou como uma ferramenta utilizada pelo sistema capitalista para manter o controlo sobre os indivíduos, reforçando as tendências consumistas. Esta perspetiva evidencia a forma como esta noção de conforto pode funcionar como uma barreira à mudança e impedir a adoção de práticas ‘sustentáveis’.
Pelo exposto e porque a transição ecológica exige mudanças significativas quer nos comportamentos individuais, quer nas normas sociais e quer nas estruturas socioeconómicas, a associação entre consumo e bem-estar pode conduzir-nos a visões redutoras que priorizam o conforto, de curto prazo, os desejos materiais mais imediatos, em detrimento do equilíbrio e sustentabilidade de longo prazo. É por isso que esta visão é redutora ao entender a transição ecológica como forma de impedir o conforto e o bem-estar. O desafio é conseguir ver além deste lado material e desconstruir estes conceitos que servem o modelo de organização social e económica instituído nas sociedades ocidentais.
A mudança do foco para a pluralidade de noções de conforto cultural ou espiritualmente determinadas, numa visão menos material e mais holística do bem-estar e da felicidade, é prenunciadora de uma melhor vida para gerações presentes e futuras, superando-se, assim, a contradição entre o ‘conforto’ e a transição ecológica e permitindo que sujeitos e sociedades acolham as mudanças que dão prioridade à sustentabilidade socioecológica.