Opinião: Comédia da vida privada

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Às vezes aborrece-se com coisas verdadeiras, mas insurge-se com as falsas. Aceita elogios pelo que nunca fez, abusa da frase “sem falsas modéstias”, critica no Facebook o tempo que todos passam no Facebook. Critica no Instagram o tempo que todos passam no Instagram. Não critica o Tik-Tok porque ainda não o descobriu. Chinesices, diria. Aliás, compra utilidades nas lojas dos chineses mas lamenta que as haja por toda a parte.
Se fosse um personagem, o povo português seria o mais eclético e abrangente que conseguiríamos encontrar. Bipolar, consegue ter sempre razão mesmo dizendo uma coisa e o seu contrário. Assobia no banho, tem o fado na ponta da língua e não se acanha com as asneiras.
As cunhas repugnam-no, exceto o pedido para acelerar uma consulta às dores de cruzes, ou o pedido de emprego que o cunhado fez para a filha. Todas as outras são um escândalo e o País está cheio de corruptos. Atrás de cada gravata há um aldrabão. Odeia os políticos mas baba-se com o cumprimento amistoso do presidente da câmara. Jura-lhe que votou nele, mas no dia das eleições foi visto de espingarda ao ombro a ir para a caça. Há quem garanta que há anos que não vota, embora reclame sempre do resultado das eleições, e que os portugueses só têm aquilo que merecem.
É do seu clube porque sim. Defende-o até ao tutano. Berra e grita. Chama ao árbitro tudo o que se lhe descola da língua. Parece mordido por um bicho. No dia seguinte vai muito sonso para o trabalho, como se tivesse tomado dois calmantes. O povo português transfigura-se. Adapta-se ao meio. É um ser inteligente. Como não?
Diz mal da limpeza das ruas, mas não tira uma erva à frente da sua porta. Isso dá trabalho e é para ser feito por quem sabe. Um tipo está até sujeito a apanhar uma multa por arrancar as ervas do passeio. Nunca se sabe quando aquilo é uma espécie protegida… É solidário com o coitado do ladrão preso, mas ameaça que mata o primeiro que se aventurar a pôr um pé no seu quintal.
Aponta o dedo à poluição enquanto que tira o carro da garagem para ir ao supermercado que fica a trezentos metros. Não põe moedas no parquímetro mas faz de tudo para lhe perdoarem a multa. Não compra jornais embora fique em pé a ler as primeiras páginas no quiosque. Vai ao Continente, abanca no sofá para passar os olhos pela Bola e pelo Record, enquanto a mulher avia as compras da semana.
O português é um tipo que se safa. É desenrascado. É uma espécie de Mac Gyver deste canto do mundo. Não lê nada que soe a literatura, mas bate no filho porque a professora diz que ele não se interessa por livros. Joga no euromilhões, na lotaria e na raspadinha. Mas não sai da cepa torta. Queixa-se do calor. Queixa-se do frio. Queixa-se quando não está calor nem frio.
Conspira contra o patrão mas oferece-se para ir lá a casa arranjar o abajur. Tem opinião sobre tudo, é um tudólogo encartado. Do mais encartado que existe. Não há povo que julgue ter um conhecimento tão vasto como o português. Só de ouvirem os queixumes, as secretárias clínicas quase podiam botar diagnósticos e prescrever remédios. Elas sim, são a grande esperança do SNS. Como não perceberam isso os ministros da Saúde?
O povo português confia que amanhã tudo se resolverá. Confia em quem não conhece, pois os que conhece são demasiado iguais a si e, para sabedoria que se aproveite, não servem. O povo português é assim mesmo. Mas não o trocaria por nenhum outro!

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