Opinião: Bento XVI, o Grande

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Muito se tem dito e escrito a propósito do falecimento do papa emérito Bento XVI. Os múltiplos textos e comentários parecem funcionar sobretudo como os “testes de borrões de tinta” desenvolvidos pelo psicólogo Hermann Rorschach, que revelam mais acerca do comentador do que do comentado. Este texto não pretende, naturalmente, constituir exceção. Não é particularmente fácil salientar algum aspeto mais relevante do legado de um dos intelectuais mais destacados e influentes do século XX. Por onde começar? Pelo jovem perito a quem o cardeal de Colónia pede para redigir o texto de uma conferência sobre o Concílio recém-convocado? O texto da conferência chega ao papa João XXIII que convoca o cardeal e lhe diz entusiasmadamente: “Obrigado, Eminência; disse aquilo que eu pretendia dizer e para o qual não tinha sabido encontrar as palavras.” O cardeal resolve assim levar o perito como assistente pessoal para o Concílio, em que Ratzinger acaba por desempenhar um papel destacado.
Continuando o teste de Rorschach, naturalmente não pode faltar o louvor ao docente prestigiado, autor de uma “Introdução ao Cristianismo” que, publicada primeiramente há mais de meio século, permanece de leitura obrigatória para qualquer pessoa interessada no tema.
Os académicos, sempre motivados pela inquietante pergunta “porquê?”, costumam, contudo, ter sérios problemas com as consuetudinárias irracionalidades associadas à gestão e à burocracia. Os passos subsequentes de Ratzinger, assumindo progressivamente cargos de maior relevância na própria gestão da Igreja, desde vice-reitor, passando pelo governo da arquidiocese de Munique, a congregação doutrinal do Vaticano, até ao papado, são de molde a causar apreensão biográfica. Apreensão que só pode crescer quando se constata que o Papa Bento XVI, mesmo enquanto bispo de Roma, permaneceu um desses universitários de velha escola alemã, focado nos conteúdos essenciais e indiferente a modas passageiras, continuando a colocar as mãos na massa e a produzir textos de grande profundidade e densidade como as extraordinárias encíclicas sobre o Amor, a Esperança ou sobre a economia; a sequência de discursos profundos ao mundo da cultura e da política (Ratisbona, Paris, Londres, Berlim); ou os livros sobre a infância de Jesus, explicitamente assinados por Joseph Ratzinger e não por Bento XVI.
Ora, o pontificado de Ratzinger acaba por constituir a confirmação experimental do célebre aforismo universitário: “não há nada mais prático do que uma boa teoria”. De facto, só alguém profundamente consciente dos fundamentos da sua função poderia ter agido de forma tão segura, consciente e consistente em temas tão delicados como a abertura das contas do Vaticano a auditorias internacionais (contra a opinião da velha guarda vaticana, receosa de interferências externas), a colocação das vítimas no centro de todo o processo de decisão relacionado com a abominável questão do abuso de crianças por membros do clero (tendo sido criticado pela sua política de tolerância zero e pelo relevo universal que concedeu a esta questão), a interpretação do Concílio à luz da indispensável “hermenêutica da continuidade” ou, finalmente, a inédita renúncia ao papado. O papa Francisco tem trilhado e aprofundado decisivamente estes caminhos, mas foi Bento XVI quem delineou o itinerário, tendo escancarado portas que alguns não queriam abrir e que outros nem sequer sabiam que existiam.

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