Uma vez, no belo Palácio de S. Marcos, num daqueles eventos da Universidade que requerem a presença de músicos, calhou-me por companhia, na mesa de repasto, um jovem de seis anos que não queria comer as batatas. Intervim, em auxílio da esforçada mãe, dirigindo-lhe na mansa abordagem própria dos não progenitores, estas palavras de incentivo: “não comes as batatas? Ora! Tiveram os agricultores tanto trabalho a tirá-las da terra…”. “Da terra??? – retorquiu o enfastiado moço perante a agora envergonhada mãe. “Da terra, sim”, soltei eu a confirmação, e deixei o resto do incentivo à alimentação a quem de dever. Pobre mãe, porventura confiante na suficiência do conhecimento do trajeto das batatas entre o supermercado e a despensa lá de casa, mas, nitidamente confiada na competência do Estudo do Meio para a explicação dos mais anteriores percursos do tubérculo. Não terá caído o pequeno conflito em saco roto. Sabendo nós quão poderosa é a memória das crianças, no dia em que “batatas” e “terra” partilharem a mesma página do livro de estudo, a lembrança daquele jantar de não-querer-comer-batatas, ao lado de um moralista pouco insistente, fará finalmente algum sentido.
Neste país, que já se gabou de ser agrícola, a agricultura não industrial (também esta fundamental) tende a transformar-se numa atividade exótica, sustentada por um punhado de “aventureiros” que insistem em desafiar as regras da grande distribuição. São eles, os agricultores, os que ainda semeiam, plantam, regam e colhem as cebolas que os hipermercados lhes compram a 0,53 €/kg para vender a 1,24 €; que cuidam das peras que lhes querem pagar a 0,90 € para vender a 2,40 €; que apanham a courgette levada a 1,10 € e vendida a 2,40 €. Por isso não lhes basta semear, plantar, regar, tratar e colher. Precisam também de, por feiras e mercados, vender o que produzem e, assim, procurar garantir um ganho menos injusto, adiando a extinção a que parecem condenados pelo alastramento consentido das médias e grandes superfícies comerciais.
Portugal precisa de retomar os trabalhos da terra – única garantia de segurança alimentar num país que, também no plano agrícola, foi prescindindo da tão vital soberania. Por isso precisa de um Ministério da Agricultura que pense a terra (e o mar) à escala nacional, mantendo a coordenação dos seus serviços descentralizados. Com o fim já decretado das Direções Regionais de Agricultura e Pescas, transferindo-as para outros lugares, em atomização “descentralizadora”, desfazem- valências e competências, retirando ao Ministério da Agricultura ferramentas essenciais à urgente revitalização do mundo rural.
A destruição do Ministério da Agricultura – e a passagem de muitas das suas competências para CCDR tão avessas ao controlo democrático – levará ainda mais fundo as chagas que a chamada “descentralização de competências” vai abrindo um pouco por todo o lado neste país crescentemente zangado. Ficará sem comando nem articulação a prevenção, deteção precoce, erradicação e controle das pragas e doenças; ficará desprotegida a saúde pública, sem controlo dos produtos de origem animal; será negligenciada a certificação sanitária da exportação, e relaxado o controlo da importação.
Desintegrar o Ministério da Agricultura significa desarticular as ligações entre o desenvolvimento rural e as infraestruturas hidráulicas, de regadio e de engenharia rural; é o mesmo que estrangular o associativismo; é eliminar a relação entre floresta e agricultura, há muito projetada pelos gulosos da madeira barata e da extinção dos baldios. É a vitória da desertificação e do lume. É uma oportunidade para a fome, no tempo das fúrias do clima, das guerras e das sanções.
Lá atrás, tinha sua razão o moço das batatas-sem-terra. Nasceu num tempo de serem já escassos os avós com mãos calejadas e cheiro a fumo de lareira. O pousio é já a paisagem prevalecente e, entre a colheita e o prato, os alimentos podem caminhar milhares de quilómetros, deixando nas rotas rodoviárias, aéreas e marítimas uma já insuportável pegada de carbono. Mas é pena. Portugal não tem de ser uma mera prateleira do supermercado do mundo.