O Hino da Europa, como se sabe, é baseado no prelúdio do quarto andamento da nona sinfonia de Beethoven. Esta obra prima, cuja importância extravasa muito os limites da arte musical, é coroada com o tratamento coral da Ode à Alegria de Schiller (“Ó alegria, bela centelha de divindade, (… ) Todos os homens se tornam irmãos por onde passa o teu voo gentil.”) A apresentação do texto schilleriano é precedida de uma longa introdução orquestral, interrompida pela voz do solista, que profere palavras escritas pelo próprio Beethoven “Amigos, não estes sons! Apresentemos antes outros mais agradáveis e alegres!” Muito se tem escrito sobre o significado destas misteriosas palavras do punho do compositor, em que Wagner e Nietzche viam a rejeição de estéticas antigas e o surgir da obra de arte do futuro.
Estas apreciações tendem a minimizar um ponto bem conhecido: a melodia do “hino da alegria” não é apenas bem conhecida hoje, mas já no tempo de Beethoven o era, pois o compositor praticamente a decalca de uma melodia gregoriana registada pelo menos desde o século IX e utilizada na liturgia da Virgem Santa Maria. Trata-se de uma melodia em resposta à súplica litânica ao Cordeiro de Deus: “Miserere nobis. Dona nobis pacem.” (Tem piedade de nós. Dá-nos a paz.) O compositor e os seus contemporâneos terão ouvido esta melodia milhares de vezes, cantada como uma tristonha lenga-lenga. Os sons rejeitados por Beethoven, antes convocando outros mais agradáveis e alegres, mais direta e imediatamente se relacionam assim com os de uma religião que rejeita a alegria, essa “bela centelha de divindade”, nas palavras de Schiller. Beethoven parece estar assim em ressonância com as palavras atribuídas a Santa Teresa de Ávila: “um santo triste é um triste santo”.
A nona sinfonia foi composta praticamente em simultâneo com outra obra-prima, que o próprio compositor considerava a sua melhor obra: a Missa Solene, pela qual empreendeu um estudo exaustivo das formas musicais precedentes. A litania ao Cordeiro de Deus, que encerra, como de hábito, o tratamento musical da missa, permite perceber um pouco melhor o entendimento de Beethoven sobre a verdadeira alegria. Beethoven inicia o Cordeiro de Deus de forma soturna e lamentosa, evoluindo as súplicas até à primeira apresentação do pedido “Dá-nos a paz”, assinalada pelo compositor com as palavras “Bitte um innern und aussern Frieden” (“Oração pela paz interior e exterior”). Contudo, esta prece pela paz é interrompida por música inequivocamente militar, que faz reaparecer, de forma aterrorizada, as súplicas “Tem piedade de nós!”. É preciso um esforço grande para retomar a oração pela paz, que conclui em clima de serena esperança.
Estas duas peças cimeiras da música ocidental são assim complementares, também na profunda mensagem espiritual de que estão imbuídas: a alegria convocada na 9ª sinfonia é inseparável da fraternidade humana em que assenta. Mas a paz é condição necessária para alcançar essa fraternidade e essa alegria. O compositor reconduz-nos à necessidade de reencontrar a paz “interior e exterior”. Não espanta assim que uma das mais paradoxais interpretações da 9ª Sinfonia tenha sido gravada pela Orquestra Filarmónica de Berlim, em 1942, dirigida por Wilhelm Furtwängler (ainda hoje um intérprete beethoveniano de referência). No meio da guerra que então decorria (e que o insigne músico acompanhava com uma guerra interior descrita pelo cineasta húngaro István Szabó no filme “Taking Sides”), o coro bem profere o texto da alegria, mas a única coisa que parece ouvir-se é “Miserere nobis! Dona nobis pacem!”