Os feitos humanos de Ronaldo: ganhar potes e potes de dinheiro e bater muitos e muitos recordes futebolísticos.
Há por aí, sempre houve, haverá sempre, outros incensados Ronaldo, invejados – mais que admirados – pelos feitos heróicos nos campos da bola e nos cofres bancários.
O ronaldismo – como adulação histérica das massas pelo poder e pelos símbolos materiais do poder – é uma invenção greco-romana, ocidental, portanto. Bebe a sua raiz nos jogos olímpicos dos helenos e nos espetáculos circenses dos romanos.
O herói desportivo, besuntado com óleos reluzentes e decorado com coroas de louros, é, ao lado do herói guerreiro, o modelo hiperindividualista por excelência. Para um Ronaldo o futebol é uma pratica em que dez serventes se esfalfam a arrotear caminhos para a maior glória do deus Sol: mais um recorde, mais um contrato de imagem, mais um anúncio, mais uma carripana de luxo, mais uma Georgina.
Ernest Shackleton, que morreu falido, foi um anti-Ronaldo. Explorador antártico, um dos maiores, em 1909, encontrando-se a apenas 97 milhas geográficas do Pólo Sul, temendo colocar em risco a vida dos companheiros de expedição, deu meia volta e renunciou à fama imortal de ser o primeiro a pisar lugar tão branco. Não procedeu assim, volvidos 3 anos, Robert F. Scott, cuja obsessão de ser o primeiro a aí colocar o pé o levou, e aos esgotados companheiros, a uma morte gelada.
É no alpinismo, e no mundo das conquistas alpinas, que encontramos o cume, e a perversidade, do individualismo ronaldista.
Trepar aguçados montes como prova pública e privada de uma invocada “superação” de limites pessoais deveria, sem mais, dar lugar a internamento compulsivo. Mas o problema é mais fundo: é que, para um ronaldista, o objetivo principal, e único, da singular vida é alcançar pináculos, qualquer pináculo, a qualquer preço, custe o que custar, sem olhar a meios, porque o nobre fim da auto-exaltação narcísica justifica todos os meios.
E justifica, no fim, se tal for necessário para a glória do Eu herói, o abandono e o sacrifício do outro.
São conhecidas e correntes as histórias de alpinistas que, na ascensão ou na descida, passando por infortunados que colapsaram por exaustão, apressados seguem para o zénite da montanha ou para o conforto do acampamento-base, abandonando-os, em branca solidão, no momento mais vital de uma vida: aquele que antecede a morte.
No mundo Ronaldo não acontece o responder pelo outro de que Levinas dá nota em Ética e Infinto. No mundo Ronaldo é impossível acontecer o episódio narrado por Jorge Semprún em A Escrita ou Vida.
Aquele momento em que um camarada do campo de extermínio, pressentindo a morte próxima,
lhe diz: – Dá-me a tua mão. Fica comigo esta noite.
E Semprún deu a mão. E ficou.