II: CAUSAS DA DEGRADAÇÃO DO SNS
Dando continuidade a uma série de artigos sobre o tema “Que Sistema de saúde pretendemos para Portugal?” abordamos hoje as principais razões que entendemos estarem na origem da trajetória de declínio preocupante do Sistema Nacional de Saúde em Portugal.
a) Decadência das carreiras profissionais e desânimo dos profissionais de saúde.
Nunca os profissionais de saúde estiveram tão desmotivados como atualmente. Esta desmotivação é transversal a quase todas as classes profissionais. O fim das carreiras médicas, o congelamento da ascensão profissional, a não valorização dos enfermeiros especialistas, a ausência de regulamentação da carreira do assistente operacional de saúde são apenas alguns dos motivos que contribuíram para esta total desmotivação. A gestão dos serviços já não se faz por necessidades, mas sim exclusivamente por imperativos financeiros, e a bagunça organizativa gera conflitos entre todos os profissionais, e o agravamento das condições de prestação de cuidados aos doentes.
b) Desinvestimento tecnológico e ausência de planos de atualização formativa
Mesmo os hospitais centrais, muitos deles universitários, por ausência de investimentos na aquisição de novos equipamentos têm vindo a estagnar na sua capacidade técnica em áreas inovadoras, mantendo um status quo operacional de anos anteriores nos sectores do diagnóstico e terapêutica. Equipamentos obsoletos, continuam a fazer parte do dia-a-dia de alguns hospitais, podendo colocar em risco a saúde dos doentes e deixando uma sensação de impotência e de desânimo nos profissionais de saúde.
c) Gestão hospitalar demasiado centrada nos aspetos financeiros distante das necessidades clínicas
A gestão hospitalar passou a governar os hospitais com base apenas em números de consultas, cirurgias, e outros actos. A obsessão pela obtenção de resultados de produção fez esquecer os critérios de qualidade e a satisfação dos doentes. Hoje, a preocupação é aumentar o número de consultas, nem que tal signifique o doente estar em consulta menos tempo do que aquelas que são as recomendações da Ordem dos Médicos. Hoje anuncia-se um crescimento do número de cirurgias num serviço ou num hospital, deixando para segundo plano a realização de cirurgias altamente complexas e diferenciadas, que contribuem para o prestígio das instituições. Há aliás Unidades Hospitalares que privilegiam nas diversas áreas clínicas, o aumento das cirurgias onde não há necessidade de colocação de implantes de forma a não aumentar os gastos financeiros da instituição. A perda de poder verificada pelos Diretores Clínicos nos conselhos de administração hospitalares transformou os hospitais em Empresas, esquecendo-se que o produto desse trabalho é um ser humano.
d) Falta de perfil de chefia e de capacidade de Liderança dos Diretores de Serviço
A chegada à liderança dos serviços de pessoas nomeadas pelas administrações hospitalares com base em empatias pessoais ou alicerçadas na segurança do perfil de “yes man” fez com que muitos dos médicos não reconheçam capacidade de liderança aos seus Diretores de Serviço. Percursos profissionais pouco exemplares, manutenção conflituosa interesses importantes na Medicina Privada, pouca auscultação interna dos reais interesses do serviço, e ausência de capacidade de confrontar a administração hospitalar quando tal é exigido são fatores que contribuem para que cada vez menos os clínicos se revejam na sua liderança, sendo soldados que cada vez dão menos para uma “guerra que entendem não ser sua”. Limitam-se a cumprir horário.
e) Ausência de reconhecimento do mérito e ausência da penalização da mediocridade
A existência de uma remuneração fixa, sem incentivos de produção, a ausência de prémios de mérito profissional e uma carreira congelada onde a pouca ascensão é feita apenas em função dos anos de trabalho, com “exames de progressão proforma” que na maioria dos casos em nada espelham o real desempenho diário dos profissionais de saúde, transformam as carreiras da área da saúde em escadas rolantes onde basta não cair e saber esperar o tempo necessário para chegar ao topo, em vez de estimular à subida ativa dos degraus da escada profissional. Por outro lado, num sistema onde o posto de trabalho está assegurado pelo quadro legislativo da função publica, a única forma de penalização do funcionário praticamente se resume à falta de assiduidade não justificada. A incompetência, a falta de rigor, a falta de dedicação, a falta de brio ético, a não atualização profissional não são sancionadas, transmitindo uma noção de impunidade onde os mais prejudicados são sobretudo os doentes.
Não achamos, no entanto, que tudo está mal no SNS. Há sem sombra de dúvidas, excelentes profissionais de saúde no SNS, dedicados, competentes, humanos e preocupados com os seus doentes. Há sem sombra de dúvida Serviços de Referência no SNS, bem dirigidos, bem organizados onde o ambiente de trabalho inspira confiança e motivação. Há sem sombra de dúvidas, Hospitais no SNS que continuam a ser referência na prestação de cuidados de saúde, reunindo a capacidade assistencial, com a capacidade formativa e de investigação. Mas não querer reconhecer que muitos dos problemas que atrás referimos fazem parte do dia a dia da maioria dos profissionais que trabalham no SNS é não querer ver a realidade, é não querer perceber porque cada vez mais profissionais de saúde saem para hospitais privados e não querer compreender porque mais de metade dos portugueses recorrem com uma frequência cada vez maior a unidades de saúde privadas.
(continua no próximo mês)