Apareceu há uns meses no Bairro para fazer o seu período de estágio profissional. Tem 20 anos, um adulto feito, mas com o sorriso ingénuo de menino a quem o mundo tirou uma parte importante do que poderia ser a sua vida.
Não há maldade neste menino-homem. Conquista-nos pela sua simpatia e pelo benfiquismo de não sei quantos costados, sem maldade, longe de claques e de estádios agressivos. Faz um esforço para acertar com o que diariamente vamos pedir nas mesas das pequenas tertúlias que vão enchendo o café. Se for a bica matinal, acerta sempre. Se mudarmos de hábito naquele dia em que fomos fazer análises e nos apetece o garoto ou a torrada, já estamos a introduzir um fator de perturbação que não era suposto entrar nos nossos hábitos – no seu entendimento. Simpaticamente pediu-me os contactos, porque quer falar comigo pelo WhatsApp, o que me encheu de alegria
Não lhe falta o apoio tão necessário numa vida madrasta para os que, como ele, a têm de atravessar, muitas vezes com um mar encapelado de onde sopram ventos que teimam em não reconhecer o seu esforço, que não compreendem o que lhe custará estar ali, exigindo-lhe uma enorme força de vontade. Mas também há os que se sentem mesmo um bocadinho agoniados com “gente daquela” a servi-los na pacatez da mesa de café.
Os que gerem a casa estão atentos à sua prestação, o Mário e a Luciana sempre disponíveis para o apoio que requer, para as contas que é preciso fazer, os trocos que têm de ser dados, a explicação que o momento exige, a palavra de carinho que tem mesmo de ser dada naquele momento, o “então pensa lá, um euro quantos cêntimos são?”. Que grande lição de solidariedade, Luciana e Mário! Obrigado.
Às vezes demora o seu tempo a fazer a troca do pacotinho de açúcar pelo de adoçante, que muita gente a fazer pedidos ao mesmo tempo desorientam um pouco a sua cabeça e as suas ideias. Foi em que mesa que pediram a água das pedras? Não, não fui eu que pedi, parece-me que foi aquela senhora naquela mesa do canto – e lá encaminha a resposta ao pedido. Todos queremos ajudar, contribuir para o seu desenvolvimento.
Limpa metodicamente as mesas, arruma as cadeiras para que fiquem simetricamente repostas depois de serem utilizadas, verifica se o pano de que se serve ainda está limpo ou necessita de ser trocado.
No fim do serviço caminha calmamente para casa, mochila às costas, respondendo a quem o cumprimenta, no fundo seus amigos. Quando lhe perguntei onde mora, diz-me simplesmente que “mora em casa” e é para lá que se dirige após um dia cansativo. Vai talvez ainda à natação ou tocar bateria, dois dos seus amores.
Sim, porque ele fez amigos, muitos amigos, quase tantos como os que frequentam o café-gelataria nas manhãs dos cafés e dos pequenos-almoços e nas tardes dos finos ou das meias de leite.
Estende-me a mão quando me vê aparecer e responde à minha inevitável pergunta de “está tudo bem?” com um sonoro, sim está tudo bem. Sorri e a mim, sportinguista de alguns costados, diz ingenuamente “carrega, Benfica”.
É uma bela lição de vida, de tentativa de integração na vida da sociedade.
Não lhe conheço a família, mas admiro-a pelo esforço que terá feito ao longo dos tempos para o ajudar a caminhar por ele, tanto quanto possível. E eu, que tive uma filha com deficiência motora, sei o que isso custa, o que nos faz sofrer, o quantas horas de noites mal dormidas a pensar como será depois e depois e depois.
E aprecio-o porque ele faz os possíveis por se adaptar a um mundo que lhe saiu um bocado ao lado.
Está ali no Bairro, com trissomia 21, com vontade de vencer as barreiras que a vida lhe colocou, um menino-homem de que todos gostam, exceto, claro, os que detestam “gente assim”.
Escrevi a pensar em ti, meu amigo. Tu já fazes parte dos meus amigos, dos que encontro no café da manhã, na cerveja da tarde, dos que comigo falam de política. Porque inclusão é política e, infelizmente, tantas vezes os que mandam se esquecem de quem tem de fazer pela vida contra os ventos e as marés.
Carrega, Sebastião!
PS – Li a triste notícia de que a Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra (APCC) está em sérias dificuldades de sobrevivência. Deixemos lá por um bocadinho os passeios esburacados, o abate das árvores ou os autocarros novos ou velhos. E pensemos como se tem de salvar a instituição, como se pode ajudar. Em nome dos cidadãos que dela necessitam.