Artigo I: alterar políticas de saúde e não apenas os ministros
A mudança de Ministro da Saúde é bem vinda mas não chega. É bem vinda porque Marta Temido manifestava já um enorme cansaço e uma falta de determinação e vontade para por em prática uma mudança que se impõe no modelo de saúde em Portugal. Para além disso um ministro da Saúde tem que saber manter pontes de diálogo abertas com todos os intervenientes na área da Saúde e Marta Temido, infelizmente, fechou ao longo do seu mandato todas as portas do diálogo com médicos, enfermeiros, profissionais técnicos e até com os gestores hospitalares.
Mas as mudanças têm de ir mais longe do que a simples substituição do titular da pasta da Saúde. O governo, os deputados da Assembleia da República, os portugueses em geral, têm de deixar de lado as suas teorias ideológicas e olhar de forma séria para o estado da saúde em Portugal. Se não o fizerem, vão comprometer de forma irremediável a prestação de cuidados de saúde em Portugal e aumentar a assimetria no acesso aos cuidados de saúde entre os portugueses. Este é um tema que exige consensos e não divergências, exige um esforço de todos e uma visão mais alargada, menos centrada no umbigo ideológico de cada um.
O sistema de prestação de cuidados de saúde em Portugal está seriamente deficiente, e numa trajectória de um declínio preocupante. Na actualidade, exige-se um modelo de Saúde diferente para Portugal. Aquele que existe está desactualizado, e esgotou-se em si mesmo. Não querer ver isto, é não desejar melhorias.
No início dos anos 70, Portugal apresentava indicadores socioeconómicos e de saúde muito desfavoráveis no contexto da Europa Ocidental, com elevadíssimas taxas de mortalidade e com uma baixa esperança média de vida. O sistema de saúde português estava totalmente fragmentado e desarticulado: existiam alguns hospitais do Estado, uma rede de hospitais das Misericórdias, postos médicos dos Serviços Médico Sociais da Previdência; médicos municipais; e um sector privado especialmente desenvolvido na área do ambulatório. A criação do Sistema Nacional de Saúde por Mário Mendes e António Arnault nos anos 70 foi sem dúvida um dos momentos mais importantes da democracia portuguesa. O SNS procurou privilegiar as Unidades de Cuidados de Saúde Primários (aposta que não teve qualquer seguimento a partir dos anos 90 ), reorganizou a rede de Cuidados Hospitalares, reestruturou e organizou as Carreiras Médicas e de Enfermagem (estagnadas desde os anos 2000 ), e procurou regulamentar e fiscalizar a Medicina Privada e a venda de produtos farmacêuticos. Durante anos foram evidentes os resultados positivos do SNS com uma melhoria enorme da mortalidade infantil, na mortalidade perinatal e na esperança de vida. Ninguém pode portanto negar o relevante papel que o SNS teve na evolução da saúde em Portugal nos anos 70 e 80, mas também ninguém pode esquecer que passaram 50 anos e a realidade actual do país é completamente diferente.
Querer manter o mesmo modelo dos anos 70, em 2022 é estar preso a princípios ideológicos sem olhar às necessidades reais dos portugueses na actualidade. O mundo mudou muito em 50 anos e Portugal não foi excepção senão vejamos:
a) Os cuidados de saúde são hoje muito mais dispendiosos, fruto da enorme evolução tecnológica. O sistema de saúde português, tal como os seus congéneres europeus, tem-se defrontado com problemas de eventual insustentabilidade financeira, ou seja, com a possibilidade de, a prazo, não ser financeiramente suportável, a menos que sejam introduzidas medidas no seu funcionamento que conduzam ao abrandamento do ritmo de crescimento da despesa pública com a saúde. O modelo de financiamento para a área da saúde não pode por isso ser o mesmo.
b) A população portuguesa, tal como as suas congéneres europeias, está hoje muito envelhecida. O número cada vez mais elevado de pessoas nos escalões etários mais altos, aumenta a necessidade de recurso aos cuidados de saúde, nem sempre acompanhado da capacidade de resposta por parte das Unidades de Saúde, em particular pelos cuidados primários de saúde.
c) Hoje, existe um número elevado de Unidades Privadas de Saúde tecnologicamente muito bem equipadas, com enorme capacidade assistencial, com equipas médicas altamente especializadas e com idoneidade formativa reconhecida pela Ordem dos Médicos. O setor privado de saúde encontra-se em pleno crescimento, englobando 127 hospitais privados, 11.600 camas de internamento, 40.000 colaboradores, 338.000 cirurgias, 1.927.000 episódios de urgência, 8.482.200 consultas médicas, e gerando uma atividade de 2.050 milhões de euros, segundo os dados da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada.
d) Em 1999, as consultas médicas privadas representavam apenas 15,6% do total de atendimentos médicos à população enquanto, em 2019, atingiram os 37,3%. No mesmo sentido, havia 102 hospitais privados em Portugal no ano 1999, número que cresceu para 127 em 2019. Observou-se também um crescimento significativo ao nível do peso das cirurgias, que aumentou de 22,4% em 1999 para 29,8% em 2019, bem como dos internamentos, que também cresceram de 15,3% em 1999 para 24,1% em 2019, e o atendimento às urgências, que passou de 4,2% em 1999 para 17,3% em 2019 (dados Expresso, 2021 ).
e) Mais de 30% dos portugueses possui um plano ou seguro de saúde privado e estes números têm crescido a uma média de 3% ao ano. Se se juntar aos 3,125 milhões de beneficiários de seguro de saúde os cerca de 1,2 milhões de beneficiários do subsistema ADSE, reservado aos funcionários do Estado e suas famílias, o resultado é que quase metade dos residentes em Portugal despende, além dos impostos, uma parte do seu rendimento disponível no setor da saúde privada ou social.
O primeiro estudo do Observatório de Saúde da Universidade Europeia ( 2022 ) revelou que cerca de 90% dos inquiridos considera muito importante o acesso aos cuidados de saúde, mas apenas 15% estão muito satisfeitos com o acesso ao SNS.
Garantir a sustentabilidade financeira de um sistema geral de saúde é uma condição indispensável para a defesa do modelo social, solidário e universal, que se pretende. Manter o modelo actual do SNS, mais do que uma questão meramente orçamental, ou até apenas económica, é uma questão ética, ou seja, se um sistema de saúde não for eficiente, jamais poderá ser justo e flexível. Este é apenas o primeiro de vários artigos de opinião que escreverei ao longo dos próximos meses sobre esta temática: que Sistema Geral de Saúde pretendemos para Portugal?