Sentia-se um leve sotaque na fala daquele jovem que, logo no início do espectáculo, rompia no palco da Cerca de São Bernardo. Dizia palavras de cancioneiro, daquelas em que um povo se identifica no que diz – brados do dia-a-dia, curtos nadas que são sinais de modos de ser, de modos de viver. A trama, entre palavras, danças e cantigas, viria a ser uma renovada aventura de palco em que o grupo que ali se apresentava ao público – o GEFAC – se identificava no que faz.
“Eu já não sei bem como e quando entrei no GEFAC. Sei que entrei depois de o GEFAC me ter encontrado na Feira da Criatividade, no início do ano lectivo. Vi de longe o cartaz de um grupo de etnografia e folclore. Associei-o logo, graças aos meus preconceitos com o folclorismo, à preservação de algo que já não existe. Acabei por falar com dois elementos do grupo e a conversa (e hoje posso dizer os ensaios que se seguiram) foram desmistificando as ideias que outrora construí. Apercebi-me desta minha envolvência no GEFAC no momento em que comecei a partilhar esta experiência com aqueles que não a viviam.
Estava metido num grande sarilho! Fui-me dando de conta de que, ao fim ao cabo, o GEFAC me conseguiu integrar em Coimbra, e que aos poucos se foi tornando muito importante para mim. A etnografia e o folclore foram-se juntando à amizade e ao bom ambiente, que foi a principal razão para entrar no grupo”.
Este é o depoimento de Juš, vertido num livro que recolhe depoimentos e passos da vida do Grupo de Etnografia e Folclore da Academia de Coimbra, o tal moço que pisava o palco em nome do povo de quem aprendeu danças e cantigas, lendas e dizeres.
As palavras do jovem nascido e criado na Eslovénia são de partilha de condição, mas são mais – são a prova de que a integração numa comunidade pelo lado da experiência estética, da partilha cultural, acaba por ser o principal mecanismo de construção de mundo. Não é coisa que eu desconheça. Posto em Moscovo nos anos de 1980, tenho por memória inicial de integração, num espaço-longe-de-mim, a participação num “kapustnik” da escola onde viria a estudar – uma celebração festiva estudantil em que a sátira encenada era, ao mesmo tempo, olhar crítico sobre a realidade e integração naquela comunidade. O estrangeiro (eu) que ali “gozou” com as asperezas daquela terra, viria a considerá-la sua pelo resto dos dias que lhe venham a caber.
No dia em que Juš contar aos seus netos a aventura da “integração” na Academia de Coimbra, nada saberá dizer sobre ajuntamentos de jovens ajoelhados repetindo patéticas declarações de obediência. Nem recordará o arremesso de um carrinho de supermercado ao Mondego enquanto ponto alto de uma irreverência balofa curada nas urgências dos HUC e nada mais. E nem por isso Juš terá dispensado os desvarios da festa, o provável exagero etílico nas noites de cumplicidade juvenil, o vaguear nesta cidade amável em que a Praça da República é o ponto de encontro natural – praça de convergência da gente em que as velhas urbes se afirmavam lugar comunitário.
O lugar de humanidade por que Coimbra responde deve muito GEFAC – perdoai a imodéstia. Mas há qualquer coisa de metáfora universalista num colectivo em que uma identidade nacional se constrói pelos olhares, os sotaques, os modos de pisar uma Chula por quem aqui não nasceu nem cresceu, mas é chamado a somar à “tradição” o ponto que lhe acrescenta quem, conquistado, conta o conto. Diz o Juš: “O GEFAC fez com que eu repensasse e redefinisse os significados que a tradição tem para mim. Ao encontrar o GEFAC, passei a ter contacto com as tradições portuguesas e, ironicamente, passei a conhecê-las mais do que às tradições do meu país. Ao fim ao cabo, sinto que este país estrangeiro se vai tornando cada vez mais conhecido. E meu”.
Nestes dias em que o GEFAC celebra aniversário, o “Pingacho” canta-se (e dança-se) em Portugal, Espanha, França, Itália, Bélgica, Alemanha, Polónia, Eslovénia, Turquia, Grécia, Irão, Brasil, Argentina, Japão, República Checa, Reino Unido e noutros lados da Terra. O desafio, afinal, não é “dar novos mundos ao mundo”. É saber acolher na velha dança mirandesa os sotaques que a queiram bailar.