Opinião: A cultura original

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Eu nasci numa família onde tive o clima afetivo e a comunidade ótima para o crescimento saudável, para o desenvolvimento linguístico e mental eficaz. Fui o segundo filho, o terceiro viria a seguir. Quatro das minhas tias, com os seus nove filhos e maridos viviam no mesmo espaço geográfico, na mesma rua, porta com porta, numa distância máxima de 30 metros. Mas a quem é que isto interessa?

O primeiro fator de desenvolvimento da criança é o tempo de exposição à língua nos primeiros meses e anos de vida, no contexto de socialização de uma comunidade de aprendizagem numerosa e onde tenha todas as oportunidades para falar, brincar e jogar. O jogo é uma atividade voluntária e felicitária de grande importância e nunca me faltaram parceiros para uma vida bem preenchida e feliz.

O período mais fecundo para a construção de uma língua situa-se entre o nascimento e os 5 anos. Uma criança que nasça na Guarda ou em “Vijeu” e mude a sua residência para o Porto, se mudar antes dos cinco, adquire as marcas fonológicas da “pronúncia do Norte”, se mudar depois dos cinco, guardará para sempre o “jota no lugar do zê”. Aos 5, a competência linguística de base, por norma, está consolidada.

Muitos consideram que o sucesso escolar se constrói na escola e discutimos ao milímetro os seus modelos de organização, tentamos identificar e definir o que são boas escolas, lutamos para que se ajustem aos novos contextos científicos e digitais, mas descuramos esta realidade: o sucesso escolar decide-se mais antes e fora da escola do que no seu interior. Aos 4 anos sabemos quais as crianças que serão adultos com grandes proventos, com casa própria, com um carrão topo de gama.

A criança, ao entrar na escola, pode levar na cabeça um mundo muito rico e um nível de desenvolvimento máximos ou um mundo pobre e caótico e um desenvolvimento mínimo. O sucesso e o insucesso, em grande parte, já vão inscritos no cérebro de cada criança, os níveis de confiança e de disponibilidade para a “corrida” são muito variáveis. O problema agudiza-se porque a escola e os seus atores foram formados para a norma e não para a diversidade, o apoio às crianças não responde às diferenças e muito menos aos meios para as compensar. A inclusão pode esperar sentada.

Este meu raciocínio pedagógico pode levar a pensar que nasci num palácio, mas não. Um palácio vazio vale menos do que uma aldeia cheia. Eu cheguei à escola primária com um princípio orientador importante: “Semearás o pão que comes”. Foi a grande lição que aprendi na minha família, não na sua componente mais letrada e “culta”, – um tio padre, três tios professores, um tio com o curso geral dos liceus -, mas mais com os meus pais, agricultores, com a propriedade suficiente para produzir tudo o que consumíamos, mas éramos nós os atores da produção. Fazíamos, não mandávamos fazer.

Eu tenho no meu currículo uma cultura rural agrícola anterior à escola, dos zero aos sete, que ficou como uma enciclopédia viva, aprendida e acumulada num tempo em que o cérebro ainda está recetivo e com espaço para acumular um verdadeiro dicionário que engloba o mundo dos objetos, dos animais, dos pássaros, das plantas, dos instrumentos agrícolas, das operações necessárias à produção, o mundo das sementes, dos frutos, de tudo o que povoa o universo em que vivemos. Aprende-se vendo e nomeando, com os olhos, sem necessidade de grandes teorias ou explicações.

Mais importante do que esta nomenclatura é a lição de vida subjacente a este contexto familiar de produção-ação: aprendes cedo a ter consciência de que consomes o que produzes. Aprendes a semear o pão que comes, a ceifar, a malhar, a separar a palha do grão, a levar o grão ao moleiro, a amassar a farinha na masseira, a levar ao forno. Aí, sim, tens pão para comer. Foste tu que o produziste.

Aprendes que as camisas que vestes e os lençóis que te cobrem na cama são o resultado da cultura do linho, que semeias, ceifas, apertas em manojos que secam ao sol, que mergulhas no ribeiro para amolecer antes de tascar; aprendes que os finos fios de linho se enrolam numa roca e que é o fuso que roda entre dedos que os transforma nos novelos que depois serão transformados em tecido numa complexa operação de tecelagem. Quando chegas à escola tens um mundo muito rico dentro de ti e sobretudo uma lição de vida bem estruturada. Os meninos da cidade, que não acompanham os pais ao longo do dia, não têm este privilégio.

Aprendeste a trabalhar desde os quatro ou cinco anos, integrado numa equipa – pais, irmãos, avós – que te dão o sentido da participação e da cooperação, elevados níveis de autonomia e de iniciativa. Mereces o pão que comes, os ovos que vais buscar ao galinheiro, o azeite fabricado das azeitonas que colheste e apanhaste. Quando entras na escola rural tens um modelo de vida organizado e interiorizado. Esta é a cultura original. A isto eu chamaria um currículo bem estruturado e organizado, em torno de um objetivo central claro e lógico. Porventura o que ainda falta na escola.

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