Bagagem d’escrita – Por outro lado (China – 2011)

Posted by
Spread the love

Foto de José Luís Santos

 

Há muito mais na China para além de política e de economia. A par das grandes construções que sublinham o brusco crescimento e dos contrassensos do seu regime, emerge todo um universo cultural que marca tanto pelo seu exotismo como pela sua riqueza e diversidade.

No meio da azáfama das cidades encontram-se jardins que são mais do que simples espaços verdes. Abundam por todo o país pequenos oásis cercados pelo betão e alcatrão que são um refúgio para quem necessita de evadir-se do ritmo citadino e abstrair-se de tudo o que rodeia. Numa tentativa de recriar o paraíso na terra, encontram-se frequentemente alguns destes espaços que sobressaem pelo brio com que são projetados e mantidos, atraindo não só pela sua beleza, mas sobretudo pelo espírito que o lugar encerra em si.

As pessoas dão vida a estes microcosmos sem, contudo, quebrarem o silêncio que lhe dá um cunho místico. Pela manhã, ou ao entardecer, usufruem desta harmonia para desenhar no ar as formas do Tai-Chi, um misto de arte marcial e dança que para esta cultura equilibra o corpo e harmoniza a mente. A concepção destes jardins obedece a rigorosos preceitos que me eram alheios até ao momento em que tive contacto com o Feng-Shui.

Nota-se nas pessoas uma leveza no modo de estar na vida que faz inveja a muitos ocidentais. Por todo o país, vê-se gente de condição muito humilde que, apesar de desfavorecida, não deixa de mostrar um sorriso espontâneo e bem preenchido, como se as tensões diárias não se acumulassem sobre os seus ombros. Quando entro no enorme jardim que envolve o Templo do Céu, em Pequim, um grupo aprende uns passos de dança, esboçando uma coreografia coletiva. Perto, havia quem se reunisse para um exercício que consistia em bater palmas ritmadamente. Ao fundo, o Templo, com a sua arquitectura circular, apresenta-se como um espaço transcendental.

Alguns dias depois, passeio pelo Palácio de Verão, a residência estiva da imperatriz Cixi, que no final do século XIX gastou o equivalente ao orçamento da construção de uma marinha de guerra para erigir este complexo de dimensões faraónicas. Há todo um conjunto de palácios, templos e, para espanto de quem aqui chega, uma enorme embarcação de mármore a preencher o vazio do lago.

Talvez porque seja domingo, há muita gente a preencher os recantos do interminável jardim. Apanho um barco com a forma de dragão para a margem sul do enorme lago artificial aí construído e fico surpreendido com a beleza de uma ponte que faz a ligação a uma pequena ilha. O fim da tarde está a aproximar-se. Vêem-se pessoas concentradas no Tai Chi, outras que aproveitam o lugar como ponto de encontro enquanto eu, fotógrafo feito de câmara a tiracolo, diluo-me numa multidão cada vez maior de amantes desta arte que para ali afluem. Como se de uma batalha se tratasse, cada um prepara o equipamento fotográfico pronto a disparar e espreita frequentemente o horizonte. Meia hora depois tinha a resposta para a razão que os movia. A luz torna-se cada vez mais ténue até que a enorme bola de fogo, já muito alaranjada, se vai escondendo mesmo por detrás da ponte. Foi das mais belas imagens que guardo nas memórias deste país.

O espectáculo do belo preenche-nos. Talvez seja por isso que os chineses deem tamanho significado aos espaços sublimes que são os jardins, bem como a algumas filosofias de vida. Cada um projecta o seu caminho para o bem-estar, e na China isso leva-se a sério. Cativante, esta estranha forma de vida.

 

Leave a Reply

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

*

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.