Ser alarve é uma condição humana. Comer como se não houvesse amanhã. Na verdade, é mais um resquício de tempos em que a alimentação estava dependente da generosidade da natureza e a incerteza de ter comida no dia seguinte levava os humanos a criar reservas de energias para garantir a sobrevivência. Mais tarde, já com a certeza da produção agrícola, transferimos a alarvice para os dias de festa, os dias de comer tudo o que se punha sobre a mesa. Dias quase dedicados só ao deboche alimentar. Era uma espécie de folga nas restrições diárias. Dias de encher o bandulho.
Por isso, sem traumas e sem culpas, que o passado desculpa, não escrevo sobre ser alarve ou, dito de forma mais suave, ser guloso, como uma crítica social. Só Deus sabe a fome que algumas pessoas passaram e passam (sim, ainda há fome, nem que não seja de sabor) e que leva a que, perante alguma abundância, percam a cabeça e se lancem ao prato com água na boca. E, nem sequer estou a pensar nas camadas sociais mais baixas e mais propensas a alguma escassez alimentar, já vi muita gente bem composta de tiques sociais a perderem o tom quando se trata de comer. Aliás, agora que a cozinha, a gastronomia e a alimentação são momento fotográfico, comer com ligeira alarvice pode ser motivo de publicação numa qualquer rede social.
Sim, não é uma crítica. Porque comer é bom. Porque o sabor dá vida e sacia. Porque há dias em que nos apetece comer tudo e mais alguma coisa. Umas vezes na solidão, sem que ninguém veja os “pecados” que estamos a fazer, quase como se fosse um prazer secreto. Às vezes, até é só um inocente pacote de bolachas ou de batatas fritas, ou então, algum prato que se encomendou em dose dupla e se trouxe para casa. Outras, queremos que seja à vista de todos, que a elegante travessa ou o tacho fumegante passe triunfante para que a inveja tome conta de quem assiste. Outras, é o prazer de encher a mesa para que os amigos ou a família comam até rebentarem e, pelo meio, se registem momentos únicos vividos na intimidade do grupo.
Na verdade, devíamos fazer um hino à alarvice. Porque ela não acontece sempre, só às vezes. Primeiro, porque não há dinheiro que a sustente e, depois, porque o estômago reflete os maus-tratos dos excessos e pede regra, comedimento. Mas, ai que, de vez em quando, sabe tão bem!
É Verão, ainda… aproveite as muitas frutas que, suculentas e gordas de sabor, se desprendem das árvores. As temporãs já se foram, mas temos ainda as serôdias. Até as luzidias amoras estão no ponto para andar a saltitar entre as silvas e correr o risco de uma arranhadela. Aproveite as comidas de Verão, na praia ou na montanha. As caldeiradas, os belos crustáceos que, feitos de outras maneiras, fogem ao paradigma do molho enfrascado. Aproveite os lanches de verão que substituem os almoços rotineiros e dê-se ao prazer dos salgadinhos, dos petiscos, do majestoso pão, do opulento tomate apenas temperado com sal, azeite e vinagre, do pepino ou dos pimentos. Nos doces, não vá pelas bolas ou gelados de produção em série, olhe bem para o que ainda vai sobrevivendo na doçaria nacional e aproveite.
Sucumba ao prazer da alarvice e seja feliz que o sabor é um privilégio.