O quarto escolhido estava muito longe de ser o ideal, mas foi o possível. Uma toalha de banho estendida no chão frio do aeroporto de Lisboa foi o meu colchão para uma breve noite aí passada. Envolvendo o equipamento fotográfico, que seria a minha companhia ao longo da viagem que estava prestes a iniciar, olhava para os ponteiros do relógio que teimavam em não acelerar. Burocracias feitas, o avião parte num voo direto que liga a nossa capital a Pequim, já do outro lado do mundo.
São muitas as horas dentro daquele monstro de aço, olhando pela janela um pôr do sol que teima, e vence, em não querer dar lugar à escuridão da noite. Já passava da uma da manhã e o disco alaranjado lá continuava, firme, não permitindo as estrelas iluminar o firmamento. A mãe-natureza tem destas coisas para quem atravessa a Sibéria e dirige o olhar na direção do Ártico na altura do sol da meia noite pouco depois do solstício do Verão.
Aterro num dia chuvoso. Os tons cinza derramaram-se sobre a paisagem e sufocam as cores, conferindo um horizonte monocórdico. Chegar ao metro é uma aprendizagem sobre uma amostra significativa de um país superpopuloso. A massa humana é um enorme ser vivo que ali se forma em segundos, com milhares e milhares de seres que aparecem e desaparecem, vindo e saindo pelas mais variadas direções, como se fossem sangue a ser bombeado num enorme coração que dá vida a esta capital. Tem de imperar a organização, caso contrário o caos abate-se numa fração de segundo.
Sou atravessado pelo choque térmico de chegar a um clima tão quente como húmido, que me obrigaria, ainda nesse dia, a consumir mais de dez litros de água. Não é fácil a adaptação a estas condições atmosféricas, mas não tenho outra hipótese. Faz parte da viagem, e aprendemos que é um dos tabefes necessários de apanhar quando aterramos longe de casa e temos de ganhar calo para estarmos preparados para uma próxima adversidade.
É momento de pegar na câmera fotográfica e de me fazer à estrada. A ânsia de disparar é mais forte que a fome, relegada para um plano tão secundário. Primeiro, está o alimento do espírito. Por vezes caem uns pingos de água que sabem bem por refrescar a cara, já por si molhada do suor, algo que o material fotográfico discorda. Quero evadir-me deste cenário urbano e de procurar um refúgio, não para os pingos de chuva, mas para a escardoçada de gente que surge à minha volta no meio de uma urbe de mais de vinte milhões de habitantes.
Procuro o jardim botânico que abraça a ilha de Qiongdao, a norte da Cidade Proibida. Troco assim o ritmo frenético do trânsito e da multidão pelo verde da paisagem que bordejava um lago de dimensões suficientes para me sentir algures no meio da natureza. O coração bate agora mais descarnadamente.
Deambulo sem um destino traçado neste ambiente de paz e serenidade, vivendo apenas o momento. Junto a uma pequena ponte, uma mãe está sentada no lancil do passeio com o seu filho. Também eles vítimas da exaustão, sentaram-se ali mesmo a repousar, tendo o rapaz entrado em sono profundo, definindo uma expressão de serenidade em posição fetal junto do aconchego de quem o trouxe ao mundo, que também aproveitou para fechar os olhos, não deixando de segurar um chapéu de chuva com as estrelas do céu. Não sei quem eram, se estariam ali há muito tempo, apenas tive tempo de pegar na câmera e fazer três disparos.
Por vezes, as coisas mais belas são as mais simples, e esse instante foi um dos que guardei com maior carinho dessa viagem ao país que foi outrora o “Império Celestial”, o de uma mãe e um filho “dormindo sob um céu estrelado”.