Opinião: A folha em branco

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Não há coisa mais negra que uma folha em branco. O carreiro de formigas permanece na toca, não parte com as suas letras para ocupar o espaço vazio. Tudo hiberna, a vida hiberna. O clarão branco, desocupado, humedecido pelo outono chuvoso, também hiberna.
Diante da folha em branco, vergastado pelo vazio, o autor é constrangido a espremer o juízo. A angústia do desacontecimento, os seus dedos entorpecidos de hesitação, olhos entre aspas, focados, perspetivos. Pondera parar o relógio, mas o tempo não deixa de passar. Sente as pálpebras a afundar. Pensa se terá febre. Ocorre-lhe estar adoecido de apatias. Vem-lhe à ideia o cursor asteriscando. Uma voz dentro de si reclama: “Inventaste o vazio. Arranja maneira de o desinventar”. A mesma voz persegue-o. A voz não para, como um rumor, sussussussurrando.
É preciso desibernar da manhã preguiçosa. Despertar a cabeça que beladormeceu. Trazer para a vida o tempo certo, o peso justo, os ondes e os quandos, os istos e os aquilos. Mas de novo a folha em branco. O autor tenta. Gagueja preâmbulos. Os dedos vacilam como uma bailarina por entre um esburacado palco. Por entre precipícios vazios.
Lembra-se de a avó, à noite, propositadamente lhe contar histórias sobre garimpeiros, para os seus sonhos encontrarem o caminho do ouro. Mas agora o caminho é uma folha em branco. Às vezes esse campo não está macio de lavrar. O monólogo não surge para arrancar palavras na esguelha da boca. Nada. É como se caminhássemos rente ao abismo, evitando olhá-lo. Algo dentro de nós pergunta por que receamos olhá-lo. Mas, no-fundo-no-fundo, tememos que seja ele, o abismo, a olhar para nós. É isso que tememos.
A folha em branco queima de frio. O que queima não medra. Só as palavras a podem salvar. E eis que do nevoento vazio, surge uma formiga baratonteando sozinha fora do carreiro. Traz uma palavra. Incandescente, chega com a afloração das sílabas, lembrando que na vida permanece a esperança.
Os dedos procuram a edição do jornal diário. Os títulos trazem letras viris, ferinas, pontiagudas. As notícias de tragédia e sofrimento no mundo deixam-nos derrubados. Comprimem-nos violentamente. Apertam o que quer que seja o âmago de nós. Cabisbaixos, regressamos à folha em branco. Porque precisamos de escrever um lugar melhor.

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