O cruel assassinato do antigo Primeiro-Ministro japonês, Shinzo Abe (1954-2022), é, aqui, a mãe de todas as notícias. Preenche manchetes, fomenta especulações sem fim e causa a desorientação política. Mais do que isso, desfere um duro golpe na sólida democracia japonesa e significa a perda de um grande homem e estadista.
Muito se falará, nestas semanas e anos vindouros, da sua influência e legado político, da tão famosa política económica a que deu o nome (“Abenomics”), e da sua posição sem paralelo no Japão moderno.
Herdeiro de uma dinastia política e com posições nacionalistas que não escapam às críticas, acabou por ganhar o respeito geral, eleito e reeleito, como uma figura constante, mas inovadora, nas várias áreas da governação, num paradoxo político que só um país tão ligado ao passado e tão descomplexado com o futuro como o Japão é capaz de criar.
Sempre alerta aos perigos que rodeavam o país, Abe procurou reequilibrar a relação de forças no Indo-Pacífico. Ultrapassou as chagas do passado e recapacitou as forças armadas, num esforço ponderado de enquadrar o Japão no lado decisivamente pró-ordem internacional baseada em regras.
Fosse pelo seu papel instrumental no desenvolvimento do QUAD – o diálogo estratégico que junta os EUA, a Índia, o Japão e a Austrália – ou pela sua presença assídua no G7 (a única e distinta figura não-Ocidental), Abe fez do Japão uma força internacional à imagem do seu peso económico, sem permitir o regresso das perniciosas tendências belicistas do passado imperial.
Era, acima e antes de tudo, um amigo de Portugal. Visitou-nos em 2014, a primeira vez que um Chefe de Governo japonês o fez em 470 anos de história de relações bilaterais. Sublinhou o potencial geopolítico de ambos os países como plataformas de expansão empresarial para regiões dinâmicas, como África, a América Latina e Ásia-Pacífico, e, num toque clássico da sua perspicácia e visão política, fez questão de recordar a importância dos oceanos para o Japão e Portugal, notando as grandes áreas marítimas que nos envolvem e o seu potencial para o futuro, para o qual é essencial manter a liberdade de navegação, de acordo com o direito internacional e com a ordem internacional baseada em regras (leia-se multilateralismo).
Às forças partidárias caberá a reação política; ao Japão, a reavaliação espiritual; a Portugal, o luto de um parceiro e amigo. Como já pude exprimir institucionalmente, à família e aos amigos de Abe, os meus mais sentidos pêsames.