Opinião – O eurocentrismo e a doença da eurofobia

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As «Cartas Persas», escritas entre 1711 e 1720 e publicadas anonimamente no ano seguinte pelo barão de Montesquieu, são essenciais para compreender a primeira grande mutação no modo dos europeus olharem os que o não são. Nelas, dois fictícios amigos persas escrevem para o país de origem com impressões de uma viagem na França de Luís XIV onde questionam os seus costumes e leis. Para o leitor de hoje a sua crítica encontra-se muito desatualizada, mas o mais importante da obra é a forma como os valores de uma civilização são ali relativizados, mas não rejeitados, por comparação com os de outra. Este método abre caminho para uma das caraterísticas essenciais e mais avançadas do pensamento iluminista: produzir uma visão do mundo que, apesar de agora se reconhecer como eurocêntrica, se esforçava então por compreender as formas de pensar, agir e acreditar de outros povos. Uma perspetiva cosmopolita, até então desconhecida na história e na geografia da humanidade, europeia ou não, que emergiu como instrumento de valorização da diversidade do humano.Todavia, esta etapa da cultura europeia tem sido por alguns setores interpretada como um logro, concebida apenas como um outro momento de menosprezo, incompreensão e domínio, mais subtil porventura, mas não menos injusto, dos povos que habitavam as paragens além dos Montes Urais e do Mediterrâneo, observados como fronteiras e não tanto como regiões de contacto e partilha. As perspetivas críticas que desenvolvem tendem a apresentar o continente europeu como um todo, onde ao longo da história se têm combinado, por vezes intercalado, enquanto tendências dominantes, de um lado, a perversão dos nacionalismos e das xenofobias, do outro, formas de prosperidade assentes na desigualdade, na exploração do trabalho e no colonialismo. Trata-se de interpretações liminarmente críticas da Europa, olhada como um espaço irreformável, irrevogavelmente submetido a um dos imperialismos, e que se alimenta da opressão, seja a dos trabalhadores e das minorias, seja a de outros povos.
As diferentes perspetivas que convergem nesta crítica são todas devedoras de uma tradição cultural progressista, parcialmente herdada da vertente internacionalista e anti-imperialista do marxismo, que fez e continua a fazer a justa crítica do eurocentrismo. Sem, todavia, dar três passos elementares. O primeiro tem a ver com a injustiça de não reconhecer o continente europeu como crisol dos valores mais essenciais, e de aplicação que pode ser universalmente partilhada, da liberdade, da igualdade, da democracia e dos direitos humanos. O segundo passo prende-se com a possibilidade de ver a Europa, no contexto geostratégico global, e apesar de todas as imperfeições e retrocessos, como lugar onde mais longe tem sido possível desenvolver uma combinação de direitos sociais com liberdade de expressão e formas estabilizadas de democracia representativa. Já terceiro passo está associado à enorme dificuldade em aceitar que esta situação privilegiada não constitui necessariamente uma afronta a outros povos, podendo até, num processo de aperfeiçoamento sempre em construção, ser partilhada, com os seus defeitos e qualidades, como exemplo possível.
O combate ao eurocentrismo não se encontra esgotado e é necessário num mundo que se pretenda mais justo, plural e igualitário. A centralidade e a suposta superioridade da cultura europeia e dos modelos políticos e sociais que produziu representa, sem dúvida, uma enorme falácia, devendo ser contrariada. Mas a pura eurofobia, vista como aversão à Europa, à sua coesão e à própria condição de europeu, é uma grave doença, que inibe o contributo que esta pode dar para um mundo mais equilibrado. Em «A Europa não é um país estrangeiro», o economista político José Tavares lembra que esta «enfrenta, ou pelo menos está sujeita, a uma tempestade quase perfeita que se abate sobre instituições imperfeitas animadas por vontades difusas». Ainda assim, no momento em que se assiste à perigosa expansão global dos autoritarismos identitários, depreciar o seu contributo terá pesadas consequências. Deixando estes à solta e, ao mesmo tempo, inibindo o «velho continente» de, sem recuar nas conquistas, lutar pela sua própria regeneração.

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