bagagem d’escrita – Cidade que já foi inferno – Mostar-2005

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Foto de José Luís Santos

Apanho o autocarro mesmo em cima da hora em Dubrovnic, depois de fazer meia cidade a correr para chegar a tempo de embarcar para um novo país. A parte inicial do percurso faz-se numa constante perpendicular junto ao mar Adriático. Depois de sair do enclave croata, passam-se uns efémeros quilómetros pelo território bósnio com acesso ao mar na zona de Neum, volta-se novamente a entrar na Croácia e só depois de transpor a fronteira em Metkovic é que se entra de facto num complexo território denominado de Bósnia-Herzegovina.
Tudo na viagem mudou a partir daqui. Na estrada que serpenteava o rio Neretva a maioria das habitações resumia-se a um monte de ruínas como resultado dos combates entre croatas e muçulmanos na guerra civil. As que ainda tinham paredes, estavam crivadas de balas ou incendiadas. Quando essa paisagem começava a banalizar-se, chego a Mostar, a capital histórica da Herzegovina, localizada no canto sudoeste do país.
Na margem direita do rio, o nível de destruição é maior, indicando o oscilar da chamada linha da frente naquela zona. Durante a beligerância que opôs estas duas forças entre 1993 e 1994, a artéria principal da cidade, o Boulevard Hrvatskih Branitelja serviu de terra de ninguém, daí que, ainda hoje, persista um considerável número de ruínas que o passar dos anos apenas conseguiu, em alguns casos, cobrir de vegetação.
Aqui combatia-se corpo-a-corpo, quando se atravessava a rua e se entrava no prédio do inimigo. Muitas vezes lutava-se dentro do próprio prédio, do próprio apartamento. Conquistava-se a cozinha ao adversário ao passo que os seus camaradas perdiam a sala de estar. Através das finas paredes, que por vezes tinham de ser reforçadas com sacos de terra, ouvia-se o respirar do adversário, um respirar de exaustão de alguém que, meses antes tinha sido bom vizinho ou mesmo melhor amigo.
Em alguns casos, a guerra também criou episódios que mostraram o melhor do ser humano. Quando não havia tabaco, mandava-se um maço para o outro lado da avenida. Houve mesmo um episódio em que um oficial muçulmano se casou e se decidiu interromper a guerra nesse dia para todos festejarem. Há outras histórias que, se não existissem, teriam de ser inventadas. Como a de um jovem que lutou pelo exército muçulmano, cujo irmão faleceu a combater pelo exército croata e o seu pai também pereceu, mas pelo lado sérvio.
Há fundos internacionais para a reconstrução da cidade, numa tentativa de limpar também o passado mas, apesar dos êxitos no campo das infra-estruturas, os esforços revelam-se infrutíferos no campo da mudança de mentalidades, nomeadamente no que toca à reconciliação. Chego à Praça de Espanha, onde está erguido um memorial aos capacetes azuis espanhóis que tombaram no cumprimento do dever pela manutenção de paz na cidade. Seis desses soldados perderam a vida no período já considerado de pós-guerra, o último em 2003. Apesar do das pazes à força que tiveram de fazer na Primavera de 1994, a guerra continua na mente destes povos, procurando sempre um modo de se materializar através de um ou outro gesto esporádico.
Um bom exemplo recai pelo símbolo maior desta terra, a Stari Most, a “lua de pedra” como um poeta muçulmano a descreveu no século XVI. Falo da ponte principal, um belo exemplar do património histórico e cultural que foi martirizado pela brutalidade humana quando foi bombardeada e se despedaçou nas frias águas do rio em novembro de 1993. Depois do conflito, deu-se início à sua reconstrução, e em 2004 foi reinaugurada, mas o seu significado simbólico de encontro de povos diferentes manteve-se submerso naquelas águas.
Aqui, o tempo está a descair-se, e a mostrar que não consegue resolver tudo.

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