Saio do aeroporto de Havana com Enrique e Marla, amigos cubanos que conheci na internet, que me iriam alojar na sua casa. Sobressai o ruído do roncar dos motores de veículos que remontam à década de 40, mas que, graças à perícia e habilidade dos mecânicos, prolongam indefinidamente o seu funcionamento, conferindo-lhes uma aura imortal. O momento vale, em si, pelo espetáculo sonoro e visual. Como se estivéssemos num museu do automóvel ao ar livre e tudo em nosso redor ganhasse vida. O seu pai alugou um velho Fiat da década de 70 para me ir buscar. Paguei-lhe a despesa, bem como o combustível, como tinha combinado anteriormente, dado que o valor em causa, 20 euros, era superior ao do seu ordenado.
Seguimos rumo ao centro já no findar do dia. Sob um ambiente abafado, ao qual ainda não me tinha adaptado, chegamos ao coração de Havana. O seu pai abranda o veículo quando passamos na Praça da Revolução para eu poder ver famoso o mural com a silhueta de Che Guevara sobre um “Hasta La Victoria Siempre” na parede do Ministério do Interior. Chegamos junto ao mar, e percorremos toda a marginal, o “Malecón”, um paredão feito pelo governo dos Estados Unidos no início do século passado, pouco depois de ter ocupado a ilha à coroa espanhola, usado como um sofá de betão armado de oito quilómetros onde os locais aproveitam para se sentar e conversar, tomar banho ou mesmo pescar. Enquanto atravessamos toda a sua extensão, já sob a aragem fresca marítima, apercebo-me do modo de vida simples deste povo, entregue a pequenos prazeres que a sua humilde existência lhes proporciona, trocando dedos de conversa com os olhares fixos no azul turquesa dessas águas, ou os abraços de casais com um pôr-do-sol laranja fogo como horizonte.
Chegamos finalmente à sua casa, numa humilde aldeia de pescadores que dista uns dez quilómetros da cidade. A esta hora, os moradores têm por hábito encontrar-se à porta de casa, à conversa com os vizinhos. Sentados em pequenas cadeiras desgastadas pelo passar dos anos, ou mesmo no chão, passam ali horas numa boa disposição que ajuda a passar do tempo. Numa rua que não terá mais de uma centena de metros, são largas dezenas que trocam o tempo passado no lar frente ao televisor a estar cá fora com um pequeno rádio ligado, com o som por vezes abafado pelas gargalhadas ou da maior efusividade de quem tem sempre algo para acrescentar à conversa que se põe em dia numa dialética interminável.
Como é um jantar especial, manda-se vir comida de fora. Chega alguém de bicicleta com umas embalagens de cartão que contém arroz, pedaços de carne de porco, mandioca e vegetais. O seu pai opta por beber o seu suplemento vitamínico que o Estado proporciona aos cidadãos maiores de 60 anos.
Antes de partir de Portugal, perguntei-lhe o que gostava que lhe levasse do meu país, sabendo que alguns produtos lhes são quase inalcançáveis pelo valor astronómico que atingem, fruto das limitações que diariamente sentem devido ao embargo norte-americano que já dura há meio século. A sua escolha recaiu para leite em pó e uma mochila pequena, algo tão básico, tão simples, que eu nunca pensaria em tal coisa.
A casa era pequena. Tinha dois quartos, o dele e o do pai, uma sala de estar, cozinha, onde se encontrava uma botija de gás de tamanho industrial, e casa de banho. O corpo dava sinais de cansaço e exigia repouso. Dormi no quarto dele, num pequeno colchão que colocou no solo. Na parede, sobressaía um retrato de Che Guevara mesmo em cima da sua cama. Perguntei-lhe por que é que não tinha também um de Fidel, ao que ele respondeu que isso impllicaria “uma longa conversa”.