Opinião: Escola – Estação da Liberdade

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Para ser-se escola é preciso não desistir de ser Escola. Ali ao átrio da Brotero, uma coleção de inscrições em estendal de panos brancos confronta jovens do século XXI com as proibições de um Portugal ainda fresco na memória dos seus pais e avós. É de mulheres que se fala, a propósito da comemoração dos 50 anos das “Novas Cartas Portuguesas” de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa – as “três Marias”. Para muitas jovens alunas, o estendal assemelhar-se-á, porventura, à evocação de um território inexistente: que país seria aquele em que uma mulher não podia ser juíza, agente das forças militarizadas ou aviadora? Que país era aquele em que a mulher não podia aventurar-se no mundo (de passaporte na mão) sem a autorização do marido; em que o casamento estava vedado e enfermeiras, telefonistas e hospedeiras de bordo? Diz a professora responsável pela revelação daquela cápsula-de-um-tempo-próximo que apenas uma jovem identificou a peça de roupa pendurada no fio – uma combinação –, lembrança de quando o corpo de uma mulher era um artigo do código penal, um capítulo inteiro do regulamento moral com que a ditadura reprimia duplamente as mulheres de Portugal.
A exposição concebida pelo Museu do Aljube “Resistência e Liberdade” integra as “Novas Cartas Portuguesas” no período histórico em que foram publicadas. Os painéis falam do que já não há; ou dito de mais própria forma: do que foi derrotado há já 48 anos. Haverá, porém, sempre quem se sirva do pouco sangue que correu naqueles dias de 1974 para reescrever a palavra Revolução, subtraindo-lhe o “R” – reescrever a História é tentação dos derrotados. Mas ali o relato histórico na primeira pessoa, patente no velho átrio de entrada e numa sala da Brotero, a revelar o muito sangue, o tanto sofrimento, a imensa coragem que transformou lápis azuis em liberdade, tortura em dignidade, discriminação em direitos.
Não faltará quem se incomode com a presença daqueles rostos, daquelas histórias de vida, daquela leitura da História no mesmo lugar das aprendizagens escolares. Há quem entenda a escola como um campo de treino de habilidades mentais, de assimilação de instruções, de conformação de vontades, confinada na linha do ranking que lhe couber nos campeonatos da meritocracia. Mas também há quem deseje a escola construtora de perfis que incluam o conhecimento das razões de poder ser-se mulher e juíza, agente das forças militarizadas e aviadora – mulheres conquistadoras de um sonho (agora) tão realizável. Por isso, que outro lugar seria mais adequado para a evocação de antifascistas – escritoras, operárias, artistas plásticas, camponesas, professoras – do que aquele que educa os netos das mulheres a quem (como à minha avó materna) foi negado o direito a saber ler e a escrever?
A Avelar Brotero, que já foi a Escola Comercial e Industrial que ficava no lado da fronteira em que o outro lado era o Liceu, decidiu comemorar a História fazendo parte dela: enquanto propõe futuros aos tantos jovens que todos os dias calcam o seu chão, propõe-lhes também que espreitem para dentro dos dias em que a luta pelos direitos das mulheres dava acesso a retrato de perfil, tortura do sono e assento no banco dos réus do Tribunal Plenário. Para que nunca se regresse àquele tempo sem luz.

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