Todos dias (e várias vezes ao dia) são despejadas na fileira de notícias dos nossos smatphones as manchetes que o tal “doutor algoritmo” decidiu serem do nosso interesse. E lá nos vai tentando guiar a opinião e o gesto, concretizando o famoso 1984 do George Orwell, porém com uma sofisticação que o escritor não teria como prever. Dois dos títulos da semana: “Diferença entre o salário mínimo e mediano em Portugal é a mais baixa da União Europeia (Jornal de Negócios)” e “Empresas oferecem salários mínimos a engenheiros (CM)”. Não estamos surpreendidos. Todos conhecemos alguém – na família ou na vizinhança – que viva o flagelo de perto. São muitas, as vidas de rumo incerto.
Houve tempo (há muito tempo) em que a formação superior era, pelo menos, a esperança de melhor salário num país que precisava de quadros para as tarefas do desenvolvimento. Esperança vã. Os engenheiros da notícia e outros diplomados do ensino superior há muito que povoam as caixas de grandes superfícies e as “posições” dos call-center, em que o salário é mínimo, a exigência é máxima e os direitos laborais são uma miragem que a totalidade dos governos quer manter assim – mesmo este, que cessa funções por ter recusado dar um rumo “de esquerda” ao PS. Talvez por falta de hábito. E certamente por comprometimento, já que uma notícia de uma rádio nacional (TSF) noticia que a “OCDE [está] contra aumento rápido do salário mínimo e a reversão de reformas laborais em Portugal”. Quem tem amigos assim não precisa de inimigos para as agruras da vida.
Mesmo assim, António Costa enche a boca e o orgulho com “os nossos parceiros”, como estes da OCDE. Os “nossos parceiros” de Costa preocupam-se com a demasiada altura dos salários baixos dos portugueses quase todos; e nada lhes pesa que os pequenos e médios empresários portugueses sucumbam ao peso dos custos da energia, das comunicações, do parasitismo da banca e das seguradoras – ferramentas essenciais ao desenvolvimento, contudo entregues à grande negociata; querem bolseiros onde há investigadores, desempregados onde há diplomados, pobres onde há esforçados; querem trabalhadores com baixos salários e nenhuns direitos arcando com a indignidade da exploração e a chacota do trato por “colaboradores”; os parceiros de Costa são os que promovem o embuste do empreendedorismo, isolando semelhantes para melhor os abaterem.
Não se pense, porém, que os “nossos parceiros” de Costa, da OCDE e da EU, são um ajuntamento de burros. Sabem bem que quanto menores forem os salários em Portugal, melhor se valerão os bons pagadores de bons enfermeiros, operários qualificados, médicos, cientistas, músicos, engenheiros. Os “nossos parceiros” poupam na formação e lucram no aproveitamento dos recursos. É ganhar duas vezes! Beneficiam, afinal, da ação dos governos de Portugal, que vêm destinando à “geração mais preparada de sempre” o pior do nosso mundo: precariedade, casa-dos-pais-para-sempre, subserviência, desalento e, no limite das forças, a emigração forçada.
Pomos os filhos no mundo por possibilidade natural e, sobretudo, por sonharmos envolver-nos na construção de vidas livres, realizadas, felizes. Sonhamos-lhes amigos; vontade de saber; rumo profissional (da própria escolha); salário capaz da casa, do essencial dos bens, da cultura, do lazer; descendência, se a desejarem, sem a inevitabilidade da “escola a tempo inteiro”. Pois é. Escolher rumos de desenvolvimento para este país já não é apenas uma questão de cidadania – é também assunto de família.
Manuel Rocha escreve ao sábado, quinzenalmente