Opinião – O erro das “contas certas”

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Algum dia – não desesperemos! – virá quem, governando, se preocupe com o orçamento dos que não têm casa porque o salário não chega; dos que abandonam a Universidade por falta de orçamento. Virá quem se inquiete com o orçamento dos que não podem pagar a consulta privada, o aviar da receita completa, os cuidados a que uma vida inteira de trabalho e descontos deveria dar direito. Haverá quem se preocupe com o orçamento dos desempregados à beira da indigência; com os pais sem a creche que o horário de trabalho lhes exige; com os artistas e técnicos sem garantia do “pão nosso de cada dia”. Um dia governará quem possa valer ao orçamento dos esmagados – trabalhadores e empresas – entre os preços do barril de petróleo e as margens de lucro dos mercadores; aos da curva descendente do poder de compra (no mesmo gráfico das injustas ascendências). Haverá quem se indigne com o orçamento dos transportes públicos das Coimbras de Portugal; da valorização das carreiras profissionais; da reanimação do Serviço Nacional de Saúde; da recuperação dos CTT’s das GALP,s, das EDP’s; do relançamento da ferrovia que foi morta às mãos do alcatrão desnecessário. Surgirá quem, governando, se revolte com a carga fiscal dos cidadãos desorçamentados; e do contraste da bonomia fiscal para com os acumuladores de lucro grande e inexplicado património.

Por agora, quem manda preocupa-se com as “contas certas”, assim como quem anuncia o inevitável, uma espécie de vulcão orçamental que vai comendo as casas dos impotentes mortais de Coimbra a garfadas de 500 €/mês no aluguer de um T2. Nas “contas certas” dos governos dos últimos 30 anos as pessoas não têm lugar, as pequenas e médias empresas não têm expressão, o fosso entre ricos e pobres não tem importância. Talvez porque a verificação das “contas certas” esteja entregue aos tais “frugais” e demais beneficiários de um sistema capitalista incapaz de inventar soluções para um mundo à beira do precipício – entre a guerra nuclear e o desastre ecológico.

Não tem de ser assim. Contas certas (sem aspas) só podem ser as da Economia que coloca no centro das soluções o trabalho e o correspondente salário dos criadores de riqueza. Por isso é que o crescimento do salário não é apenas útil – é fundamental. Basta olharmos para as nossas vidas para percebermos que só há sociedade porque há trabalho; e que as “contas certas” estão sempre erradas quando impedem a distribuição e circulação de riqueza entre os que a produzem. Há crise quando há pobreza. Por isso é que as “contas certas” estão erradas – porque não resolvem o desacerto das contas de quem trabalha, trabalhou ou precisará de trabalhar. À margem do despautério vociferam “venturas” raivosos que, protegendo os donos das suas vozes e os respectivos lucros, se atiram às magras contas dos “rendimentos mínimos” das vidas sem horizonte, de que duas vezes se alimentam (no pão e no voto).

Feitas as contas às contas das nossas vidas, conclui-se que não precisamos das “contas certas” e da “credibilidade” que nos recusam a habitação, mas pagam as falências bancárias; que impedem o acto médico a quem precisa, mas alimentam o negócio da doença; que matam o pequeno empresariado (todo) para alimentar a grande distribuição e seus garrotes.

Não há “contas certas” sem distribuição de riqueza pelos que a produzem, directa ou indirectamente – do banco da escola e da universidade ao eito da seara, à linha de montagem, à sala de partos ou ao naipe de orquestra. Orçamentos sem gente lá dentro são sempre contas erradas.

 

Manuel Rocha escreve ao sábado, quinzenalmente

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