Opinião: Afeganistão… uma barragem que rebentou

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Este é o primeiro artigo de opinião que escrevo neste jornal após a partida de Norberto Pires … que nunca esquecerei, já que tantas vezes a coluna que ele escrevia em As Beiras fazia fronteira comigo nesta coluna. Coimbra perdeu muito, mas o Diário As Beiras também ficou mais pobre com a perda da fluência, da inteligência e da oportunidade e frontalidade com que sempre abordava os temas que escolhia. Guardarei comigo a colheita da sua inspiração.

Hoje sou forçada a falar aqui do que é notícia diária, escrita, falada, comentada, mas, simultaneamente, muitas vezes menorizada, saturante e distorcida pela repetição constante das mesmas imagens, mas que, em meu entender, deveria ser a maior preocupação de todos pela caixa de Pandora que se abriu: o abandono (ou, melhor dito, a fuga atabalhoada) do Afeganistão e o regresso dos talibãs ao poder.

E, quando já sobejam movimentos de defesa dos direitos universais e movimentos feministas que se manifestam por tudo ou por nada na defesa dos direitos de igualdade de géneros, parece estar esquecido que, muito embora a Constituição afegã de 1964 tenha afirmado a igualdade de géneros, tudo foi rasgado depois pelo domínio talibã! Precipitada ou não (não será agora que isso deva ser discutido), a verdade é que a invasão do Afeganistão nos inícios do Séc. XXI e os 20 anos que se seguiram abriram perspectivas de liberdade (“direitos, liberdades e garantias”) nunca antes imaginadas! Agora, de um dia para o outro, tudo ruiu!… Os Estados Unidos da América e os Países Europeus que os secundaram, e exerceram o poder durante vinte anos, fogem … e o presidente afegão, que há três meses jurara morrer se necessário, “safa-se”!… E, sem qualquer resistência, os talibãs ocuparam o poder …

Então, “para inglês ver”, os que fugiram dizem-se solidários e estabelecem “pontes aéreas” de evacuação … “para inglês ver, “para o mundo ver” … que há reconhecimento, que há solidariedade, que há nem sei o quê!…

Mas as cenas de desespero, num caos a que o mundo assiste estupefacto, com milhares de pessoas que se atropelam com rumo ao aeroporto de Cabul, com papéis de identificação na mão ou mesmo passaportes ocidentais que exibem, como que exigindo àqueles a quem serviram durante os últimos 20 anos e que lhe haviam prometido um mundo de igualdade de direitos, deixam bem clara uma crítica implícita ao cinismo dos países que, afinal, apenas os “usaram” durante estes anos. E como é chocante ver e ouvir os gritos das mulheres assustadas, em fuga, desorientadas, entregando os seus filhos por cima dos muros aos soldados que aí estão, dizendo-lhes que os salvem porque elas não têm lugar para onde ir quando os talibãs começarem a mandar nas suas cidades. E, neste caos, nesta fuga desordenada, algumas mulheres “dão à luz” bebés que os militares recolhem!…

A quantidade e a gravidade de direitos humanos que não foram respeitados nesta “fuga” vergonhosa atinge esta Gente que não teve e não tem tempo de gritar ao Mundo para lhe pedir (exigir) que a História se decida a perceber que as palavras pensamento e liberdade não são para matar (ou deixar matar), mas para salvar a todo o custo!
Mas, se esta Gente não tem já tempo para gritar ao Mundo os seus direitos humanos, de exigir respeito pelo seu pensamento e pela sua liberdade, onde estão os gritos dos movimentos humanistas, feministas, etc. que tantas vezes se ocupam de casos minor, talvez apenas à procura de visibilidade?

Esta fuga, cobarde e caótica, não poderá nunca ser comparada à fuga do Vietnam ou outras derrotas militares de países ocidentais. Esta fuga é simplesmente uma vergonha… porque um acto de puro egoísmo político… e cego egoísmo político!
As ondas de choque desta reconquista de Cabul pelos talibãs podem ter sido uma barragem que rebentou e, na enxurrada, a água pode alagar todo o mundo.

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