Talvez fossem perigosas (quem sabe) aquelas silhuetas de cegonha. E inquietante, porventura, aquele esboço da colina, em que a Torre da tal Cabra se empoleira. Ou talvez o mal estivesse na sonoridade da frase “CEGONHAS REVERTEM FUSÕES, MATERNIDADE NOS COVÕES”, escrita assim em maiúsculas para que melhor se ouvisse. É sabido que os ouvidos, se demasiado mimosos, arrepiam-se com qualquer som que não seja o das eloquências confortáveis. E que os olhos, se demasiado ocupados em narcísica contemplação, abominam tudo o que seja cor numa certa paisagem “democrática” feita para ser estéril e incolor. Seja pelo que tenha sido, apagar uma pintura mural de conteúdo político, assinada, é atentar contra a liberdade de expressão. E isso não pode ser. Nem será.
Registe-se, porém, a sofisticação dos novos censores: não deixam nem carimbo nem o rasto do lápis azul dos mentores. E até já se deixaram de exibir autoridade, sabedores de que o susto é fraqueza de quem transgride, não dos que lutam. Proíbem a branco – as demãos que forem precisas! -, como quem se suja de silêncio, com a camuflada desvergonha dos injustos. Saídos da noite proibidora de que são herdeiros, já não se escondem atrás de notificações, disposições, regulamentos, avisos, normas e demais pretextos. Apagam apenas, sem aviso nem coragem.
Pinta, por cima, a mão que tem de pintar. Há profissões que são assim, de cumprir ordens e calar. Porventura sem querer. Pois quem sabe se o operário-da-tinta-branca não há de ter maldito aquela função, agradado afinal do perfil da cegonha, do contorno dos telhados, do campanário da Torre, às tantas confortado com a imagem do Sol a iluminar a esperança de ver renascer um hospital assassinado. Talvez lhe tenha desgostado o apagamento da metáfora da ave de longo bico que, chegada de Paris, encontra nesta Coimbra sem sorte duas maternidades empobrecidas, onde as crianças que nascem só podem contar com o milagre das mãos abnegadas dos que insistem em recebê-las no mundo. Quem sabe não terá lamentado a eliminação daquela palavra COVÕES, de que alguma vez se tenha valido no tempo em que o grande negócio da saúde era apenas conspiração sem pasta governativa.
“Não gostaram” – dir-se-á de quem ordenou a censura, de quem mobilizou recursos para que fossem caladas as reivindicações justas de reversão das fusões e de reabilitação do velho Hospital Geral (que sabemos capaz de garantir cuidados a quem nasce e a quem dá à luz). Não se trata, porém, de um caso de depreciação estética. Mesmo sendo aquele mural um objeto de propaganda que teve preocupações estéticas – como as deve ter toda a ação política – o que ali incomodou o censor foi uma de duas coisas: ou a justeza da mensagem; ou (o que seria ainda mais grave) a afixação de propaganda política fora dos espaços de acantonamento em que se quer encurralar um direito conquistado em 25 de Abril de 1974.
O direito à propaganda política não é negociável. Propaganda política não é publicidade – é proposta, argumento, opinião, informação, exercício democrático, património. Permanecerá. Já no que toca aos censores, escasso será o seu préstimo. Mesmo que possa demorar. Chico Buarque explica: “Apesar de você / Amanhã há de ser / Outro dia. / Inda pago pra ver / O jardim florescer/ Qual você não queria. / Você vai se amargar / Vendo o dia raiar / Sem lhe pedir licença. / E eu vou morrer de rir / Que esse dia há de vir / Antes do que você pensa”.
Manuel Rocha escreve ao sábado, quinzenalmente